O que você fez durante o grande recolhimento pandêmico de 2020/2021? Ouviu discos, tocou um instrumento, lembrou de como eram calorentos e claros os verões passados? De repente pensou em ouvir um novo hit, algo para tocar no seu repeat sem enjoar (ou até enjoar, pior que rinite, sem deixar dormir), ou pensou que está tudo igual no final das coisas (um sentimento comum a todo vivente dos períodos entre-ondas dessa grande pandemia). Dos hábitos do leitor atento eu não sei responder, mas se perguntado o que o baterista/compositor natalense Ian Medeiros fez durante esse período, seguramente ele pode responder com seu EP de estreia, Varanda, uma rede estendida entre um ponto e outro de sua inicial carreira agora de músico solo. O EP de Ian, baterista conhecido em palcos potiguares e brasileiros e até internacionais sentando a mão no seu kit reduzido só com chimbal, caixa, bumbo, surdo e um ride gigante barulhento do qual ele conseguia sempre extrair sons mais pesados ou mais suaves conforme o humor da noite (ou do dia), apresenta uma fase ora melancólica ora esperançosa em tempos de apocalipse: talvez brilhe um sol em qualquer varanda, tímido ou amostrado, se você der play nessas quatro faixas tão ensolaradas – mas que, como toda luz forte, também gera suas sombras.

O disco de Ian foi produzido no âmbito da Lei Aldir Blanc, e foi motivado desde que o músico foi convidado para tocar algumas faixas suas na primeira edição do Festival Dosol Online, em 2020. Sob o heterônimo “Varanda”, na falta de outro nome para um projeto e naquele momento sem muita segurança em usar seu nome próprio, Ian apresentou versões cruas de músicas que vinha compondo durante o isolamento, improvisando com violão, brinquedos eletrônicos e algumas percussões. Meses depois, surgiria a oportunidade de expandir a visão da varanda e convidar alguns amigos para entrar na sua casa e refúgio musical, o Cantilena, seu estúdio sediado no bairro de Capim Macio, onde já foram gravados seus sons com Mahmed, Kung Fu Johnny, Mulungu e diversos outros projetos.

Capa do EP Varanda, de Ian Medeiros

Ian deu seus primeiros passos na cena natalense chamando a atenção por tocar bateria e cantar no Kung Fu Johnny, num power trio rockeiro bem à moda no período, tragando o que havia de mais essencial no som de um Black Keys e expandindo com um sotaque de rock potiguar que fazia muito sentido naquela época de extrema ebulição da cena de rock natalense. Pouco tempo depois, o músico exibia sua versatilidade dando a cara dos compassos delicados e intimistas do Mahmed, onde chamava a atenção por dar o tom dos sempre catárticos shows da banda potiguar; se num dia muito animado, estendia músicas, falava ao microfone, batia mais forte nos tambores, improvisava; se num dia mais tranquilo, conseguia fazer cada música soar mais baixo, só com o chamado tímido das baquetas em cada prato, como se tomasse cuidado para não acordar alguém no quarto ao lado. Já vi o Mahmed tocar para plateias gigantes no Centro-Oeste do Brasil, brandindo seu som com uma porrada que marcaria qualquer festival, e já vi a banda tocar para poucas pessoas em volume baixo, às 3h da manhã num pequeno e apertado Alchemist, na rua Chile, com Ian ressaltando os momentos mais pontudos e mais aparados do show, tocando baixo a rés do silêncio e depois tocando alto contagiando a todos no ambiente. Essa dinâmica era uma de suas características ao vivo, e parece se espalhar por suas expressões também como compositor e letrista. No Mulungu, projeto em que faz a cama harmônica de modo mais chique, apresenta sua face mais músico de estúdio, já que a banda pouco tocou ao vivo e é um dos projetos brasileiros que se lançaram a público com discos disponíveis durante as quarentenas. Em outros projetos, como quando tocou bateria para Luísa e os Alquimistas (em “Piece of Me”, de Vekanandra, de 2017) ou Simona Talma (em “Amado”, de Ficção, de 2017), a sua marca pragmática, exata, está também lá: a bateria soando sintética como uma drum machine – mas tocada por mãos humanas, demasiado humanas.

A humanidade do baterista, na verdade, é o que há de mais excessivo no modo como Ian toca e tocava nessas diversas aparições. E essa dinâmica do humano, mais agressiva ou mais contente, mais contida ou mais excessiva, é que se esbanja nessa primeira incursão pela carreira solo, agora trazendo suas canções abençoadas (como o próprio Ian diz) por seus amigos produtores Gabriel Souto, Walter Nazário e Guilherme Assis. Os três representam fases importantes não só da carreira musical como também da vida do músico. Gabriel, produtor de projetos importantes da música potiguar como o Dusouto e Luísa e os Alquimistas, é parceiro de Ian desde os tempos do acústico do Dusouto na Casa da Ribeira e da produtora Pixel A GoGo, em que faziam juntos jingles e pequenas trilhas sonoras para animações. De lá para cá, participaram juntos de diversos projetos, como o Brinquedo Rico (com Gustavo Lamartine, outro membro do Dusouto) e gravações/participações com diversos artistas com quem Gabriel trabalhou, de Luísa e os Alquimistas a Ângela Castro. Walter Nazário por sua vez também firma parceria intrínseca com Ian: desde o trabalho junto com o Mahmed, participaram de diversos projetos e bandas, incluindo o próprio Kung Fu Johnny, e a produção de trilhas sonoras, como a do curta Mar de Zila (Ariane Mondo, 2017).

Walter e Gabriel também participaram de um esboço dessa presença de produtores trabalhando junto a Ian: entre 2013 e 2014, os músicos organizaram uma espécie de vivência no Cantilena sob o nome de Cantilena Music Lab, que além dos três incluiu o produtor e guitarrista Henrique Geladeira. Essa ideia não deu frutos imediatos mas pode ter funcionado como passo inicial para essa incursão de produção no bojo desse estúdio-casa. O terceiro produtor e amigo de Ian presente nas gravações foi o recifense Guilherme Assis, que toca na banda Mulungu com o baterista e participa de diversos projetos da música de Pernambuco, atuando como baixista, guitarrista ou produtor. Esses três nomes de produção e parceria ganham, em Varanda, um nome muito sugestivo: o coletivo GOSTO DE GROOVE (fica a cargo do leitor e ouvinte pronunciar a critério: se ‘gôsto’ ou ‘gósto’ de groove, vai da intenção e percepção de cada um).

É com esse coletivo e esses produtores, dividindo-se com Gabriel assumindo os synths, Walter as guitarras e Guilherme os baixos e alguns synths, que o disco de Ian foi tomando forma. Com alguns ensaios e dando aspecto a ideias de melodias e sons, a ideia de Ian era compor um disco não de forma pretensiosa, mas estando em casa, “em família”, como o próprio músico frisou, num ambiente confortável, em que os músicos já conhecem suas características, sem precisar fazer uma pré-produção mirabolante, as portas e janelas da casa são abertas sem receio.

É com essa naturalidade que a primeira faixa, “tá tudo igual”, teve sua primeira versão por acaso: enquanto consertava a tarraxa de um violão, Ian percebeu que o tinha afinado de modo estranho, empenado, com as duas últimas cordas soando exatamente iguais. Tocando por brincadeira para testar as cordas, acabou achando o caminho para a faixa inicial do disco, um neo-soul confessional, que não tem pudores de expor as fragilidades em primeira pessoa. A faixa é entremeada de sintetizadores espaciais, solos empenados com a dita afinação empenada, distorções agudas. O tom soturno da faixa contrasta com o tema solar em “hit”, a segunda música, um spin-off de “Fancy Man”, de Devendra Banhart, levado no órgão vintage, gravado como se fosse um folk hipster das pradarias mas com letra fofa, que esbarra num som d’O Terno (e bem melhor do que o trio paulista, diga-se). Mas é em “plano perfeito” que o contraste das luzes e sombras se pronuncia. Essa faixa é talvez o grande hit do disco, a despeito do sugestivo hit auto intitulado: funk psicodélico, ou uma espécie de POLKA reestruturada, Ian disse que a música foi composta de brincadeira, primeiro com a namorada, de onda, só na malícia, e de repente tomou corpo e entrou no disco, mesclando Raça Negra e diversas piadinhas. Assim como a primeira faixa, feita enquanto consertava um violão, essa teve sua solução final enquanto Ian tentava dar jeito num baixo que estava quebrado – o conserto não é só do instrumento, mas também das formas sonoras pretendidas.

O disco encerra com “rotina”, faixa tão confessional quanto a primeira e que dá forma à circularidade do EP. É interessante notar a completude de um disco tão curto, gravado entre amigos, na manha. Podia ter mais (e espera-se que tenha, evoé!). A produção refinada, soando vintage e ultra contemporânea ao mesmo tempo (e talvez justamente por ser bastante vintage esbarra no que há de mais contemporâneo, a releitura constante do passado e de suas sonoridades), aponta aqui para o afrobeat, para o folk de bandas como Vetiver e Andrew Bird, o folk sambado de Rodrigo Amarante, mas também se alinha com novos sons brasileiros, como os de Lucas Gonçalves, Pedro Bienemann, YMA, Tagua Tagua. Essa breve jornada espirituosa e intimista de Ian Medeiros vai além da curiosidade do disco de baterista que também canta (ora, esse é o grande motivo da The Band e Levon Helm terem ido tão longe), mas mostra a face inquieta e curiosa de um compositor e criador cuidadoso de formas harmônicas. Varanda aponta para um caminho abrasivo e amplo, bem além de onde as miradas aqui apontam.

3 respostas para “Recebendo convidados em casa: Ian Medeiros estreia com EP Varanda”.

  1. Gostei do Som… Estilo Bem Particular!!!

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  2. […] anuncia a nova formação musical de seus shows. A partir de agora, terá a companhia dos músicos Ian Medeiros e Walter Nazário, ambos ex-integrantes da banda Mahmed. Com Ian na bateria, Walter no contrabaixo […]

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