Em 2021 Raul Seixas estaria completando 76 anos. Já Há dez mil anos atrás, um de seus discos mais famosos, chega aos 45 anos com enorme vivacidade. O álbum traz, além da própria “Eu nasci há 10 mil anos atrás”, outros clássicos como “Eu também vou reclamar” e a regravação de “As minas do rei Salomão”, lançada originalmente em seu álbum de 1973, Krig-ha, Bandolo!.
A década de 70 foi a mais produtiva desse genial artista baiano que comecei a acompanhar ainda na adolescência. “Há 10 mil anos atrás” foi um álbum que surgiu ainda sobre a pressão da gravadora para que o músico lançasse grandes sucessos, muito em função da repercussão de Gita (1974) e da queda de vendas sofrida em Novo Aeon (1975), disco este, que acho genial e é o meu preferido de Raulzito, mas o fato é que ele findou “pagando o pato” de ter sido lançado logo após Gita e o seu estouro de vendas.
Há 10 mil anos atrás foi também o último da profícua, porém conturbada, parceria com Paulo Coelho. Apesar da maioria das resenhas pela internet apontarem este como um disco de temáticas místicas, considero que ele traz muito mais reflexões sobre a vida e críticas aos padrões sociais, o misticismo em si serviu apenas como um formato de abordagem que buscou gerar o interesse do ouvinte, que deixou o Novo Aeon de lado, mas idolatrava Gita.
Algumas canções que podem coadunar com essa ideia são a própria faixa de abertura “Canto para a minha morte”, um tremendo tango com uma letra bela e um tanto fúnebre, que reflete sobre a efemeridade da vida. Em seguida vem “Meu amigo Pedro”, música que dizem ser uma indireta, bem direta, para o irmão do próprio Raul, mas que na real é uma crítica para qualquer um que se subjuga aos padrões sociais, mesmo que estes não sejam benéficos para a própria pessoa e ainda julgam quem faz diferente.
“Ave Maria da Rua” é um caso à parte, letra belíssima, quase religiosa, porém se prestar atenção ele aproveita para mostrar a “Maria” santa nas diversas religiões e não só isso, mas coloca as diversas “Marias” da vida cotidiana na música: “Teu nome é Yemanjah (Yemanjah) / E é Virgem Maria / É Glória e é Cecília / Na noite fria / Oh, minha mãe / Minha filha tu és qualquer mulher / Mulher em qualquer dia”.
“Quando você crescer” é mais uma que reflete sobre a vida simples em sociedade, a dificuldade de alguém que não nasceu em “berço de ouro” em conseguir ser alguém importante e as nuances de uma vida tida como simples, mas boa para uma família simples do subúrbio.
“O dia da saudade” é uma das mais rockeiras do disco, bateria pulsante, guitarras e piano dividindo momentos de destaque e backing vocals femininos. É também uma das que tem uma letra mais desapegada de críticas ou reflexões mais profundas.
“Eu também vou reclamar” é uma crítica que ele faz à própria indústria musical da época, onde o próprio Raul se sentia desprestigiado com a gravadora. A gravação do Há 10 mil anos atrás foi muito problemática. A letra dessa música traz citações diretas a Silvio Brito e Belchior, no caso de Silvio Brito, eles chegaram a trocar rusgas à época.
A versão de “As minas do rei Salomão” deste disco, considero até melhor que a original, com uma pegada mais roqueira. “O homem” pode ser vista como trazendo o momento afetivo e musical de um Raul que passou temporada exilado nos EUA, se casara e tivera uma uma filha, e a volta para o Brasil que também foi motivo de muita renúncia.
“Os números” é a música regional, forró puxado no baixo, que aparece em muitos discos de Rualzito. A letra basicamente cita números e alguns simbolismos que podem ser relacionados a eles. “Canção de Ninar” desce o ritmo em um sôfrego canto que mais parece um pranto.
Por fim, “Eu nasci a dez mil anos atrás” é uma verdadeira canção que brinca com o misticismo, citando passagens da bíblia, histórias do imaginário popular e também eventos históricos.

Lógico que julgar saber o significado real de algumas das letras é complicado, afinal, só o próprio Raul e Paulo Coelho têm o real conhecimento do objetivo de cada letra, porém, em uma livre interpretação deixar de lado esse olhar que vê tudo de Raul como puro misticismo é bem relevante, o misticismo foi uma fase de uma carreira que trafegou pelo político, o crítico, o cotidiano e, principalmente, na sua fase final, o romântico.
Além de um grande artista que tinha a necessidade constante de ter uma liberdade criativa, Raul Seixas tinha uma visão comercial que superava, muitas vezes, a visão dos próprios produtores e das gravadoras, o que, junto ao problema do alcoolismo, foi um dos fatores para ele ter “se queimado” com as grandes gravadoras ainda no final dos anos 70 / início dos 80. Era um mestre em brincar com palavras e construir composições inteligentes, de muito conteúdo.