Selo Fictício e os sons que não existem

Por Jesuíno André

O que podemos entender como música experimental? Apesar da evidência que a própria palavra expressa, a definição não é uma tarefa fácil. “Experimental é essa tendência de tentar romper a fronteira dos elementos funcionais normais da música”, disse o maestro, músico e produtor paraibano Marcello Soares Jr num breve resumo sobre o assunto. Por conseguinte toda música é experimental por natureza — acústica e elétrica. Nesse arcabouço estético imaginamos a dificuldade para se produzir, divulgar e expandir essa proposta sonora.

E é desse universo que destacamos o selo paraibano Fictício — o único especifico nesse gênero do estado — que foi criado no começo de 2020 com o intuito de produzir e promover alguns artistas da região e do resto do pais. Entrevistamos o músico CH Malves, um dos integrantes desse coletivo de sete experientes músicos, produtores e artistas, que nos fala em detalhes desse novo empreendimento artístico.

O Inimigo — Primeiro nos diga quando começou essa ideia, como e por que surgiu o selo?

CH Malves — O selo Fictício iniciou oficialmente suas atividades no primeiro semestre de 2020, mas ele representa a culminação de um processo que se iniciou há pelo menos cinco anos. Todos os envolvidos no selo têm alguma ligação com o Artesanato Furioso, um coletivo de performance coordenado por Valério Fiel, compositor e professor da UFPB. Entre 2014 e 2018 o Artesanato Furioso promoveu séries de concertos mensais, festivais e pequenas turnês no meio da música contemporânea e experimental.

Sempre houve uma sensação dentro do departamento de música que certos repertórios considerados “difíceis” não teriam chance de cativar um público na Paraíba. Mas depois desse período de produção intensa, percebemos que o repertório não era tão difícil assim, e que tinha muita gente no nosso entorno que se interessava e buscava essa música: muitas das nossas apresentações tinham um público maior do que o da orquestra da universidade. A partir daí começamos a fazer várias pontes com músicos do Brasil inteiro, tanto vizinhos como Natal e Recife quanto artistas de Minas, São Paulo e Rio.

Durante esse período, nosso foco maior era tocar, e bem menos em registrar e organizar o que estava sendo produzido. Gravamos quase tudo, mas lançamos bem pouca coisa, e essa lacuna foi ficando cada vez mais evidente. Além disso, o pouco que era lançado ficava restrito às poucas pessoas que conheciam pelo nome alguns dos projetos e bandas que tocavam no Artesanato Furioso.

Finalmente, Vitor Çó foi quem deu o pontapé inicial para que o selo começasse a operar. No começo de 2020, a partir de conversas em grupos de música experimental no Facebook, Vitor organizou e reuniu a coletânea Música de 1 Minuto, com 24 músicas de 1 minuto, cada uma feita por um artista diferente de várias partes do Brasil. Muita gente participou, e o sucesso nos encorajou a tentar organizar melhor as relações e produções que construímos nesse tempo todo.

Em 2019, gravamos uma apresentação do Trio Pó de Serra, que era formado por Vitor no triângulo, Matteo Ciacchi na zabumba e Leandro Drumond na sanfona, aproveitando a instrumentação típica do forró num contexto de improvisação livre. A gravação ficou guardada por um ano, tentamos lançá-la por outros selos que não demonstraram muito interesse, e ficou claro que nós mesmos tínhamos que fazer isso. Como a coletânea já tinha sido publicada, ela se tornou nosso lançamento nº 0 — já que tecnicamente ela precede o selo, e o disco do Trio o lançamento nº 1.

Quem são os integrantes dessa equipe?

Além de Vitor, também estão diretamente envolvidos com o selo eu, Renê Freire, Rafa Diniz, Matteo Ciacchi, Luã Brito e Felipe Lins. Todos são ou foram alunos da UFPB e a maior parte mora em João Pessoa, mas todos são de origens bem diversas. Rafa é do Crato, onde mora atualmente, Renê é de Caruaru e mora em Recife, eu sou de Sergipe, Vitor é de Minas Gerais e Felipe atualmente é aluno da USP. João Pessoa, especialmente a UFPB, é um ponto particularmente ativo de encontros e de produção cultural, algo que muitas vezes surpreende quem vê de fora.

Nos fale aí sobre os artistas já lançados pelo selo.

Além da coletânea de músicas de um minuto e do disco do Trio Pó de Serra, já lançamos mais dois discos pelo selo em menos de seis meses. Um deles foi Enquanto Ainda é Tempo, um disco interessantíssimo de Didier Guigue, que também é professor da UFPB, mas que é muito ativo na cena underground paraibana desde a década de 1980. Esse disco registra a produção dele nos últimos dez anos, e reflete um pouco da decadência da vida pública brasileira nesse período. Nosso último lançamento, C-Agardh, é um duo de piano e saxofone com Renê Freire, que trabalha no selo, e Thelmo Cristovam, um artista sonoro que mora em Olinda e tem uma discografia impressionante feita nos últimos vinte anos.

Quais são os projetos em perspectiva que vocês pretendem fazer?

Mesmo estando na ativa há pouco tempo, conseguimos realizar lançamentos que nos orgulhamos bastante. Todos estavam envolvidos em fazer com que cada disco fosse mais do que um mero registro sonoro, mas pedaços significativos de uma história que está sendo contada continuamente. Dar o passo a frente e criar o selo foi a comprovação de que havia uma grande demanda a ser cumprida, e ainda não tocamos nem a superfície. Há muitos artistas com os quais temos relações que, por diversas razões, nunca gravaram um disco ou estão há muitos anos sem lançar nada, e pretendemos fazer algo a respeito. Além desses que já conhecemos, muitas pessoas buscam conhecer e demonstram interesse em lançar trabalhos com o selo. Nosso trabalho de uma certa forma é também de pesquisa, e pretendemos prosseguir com ela durante bastante tempo. Temos também estreitado laços com pessoas que fazem trabalhos similares ao nosso em todo o Nordeste, e certamente muitas dessas parcerias renderão bons frutos.

Como foi que vocês chegaram ao nome Fictício?

O nome mesmo veio de uma brincadeira com o fato de que a gente precisava de um selo, mas ele não existia. Mas nos pareceu um nome bastante adequado também para descrever as músicas que lançamos. Mesmo muito diferentes uns dos outros, os discos da Fictício parecem apontar para um lugar que não existe de fato. O que poderia ser familiar não é mais, e na verdade nunca podemos ter certeza se aquilo que nos parece incomum poderia ser o cotidiano de uma realidade alternativa. Os discos não atendem a expectativa do que se poderia imaginar ser uma essência musical nordestina, mas ao mesmo tempo não estão completamente alinhados com o que se chama por aí de experimental. E é nessa fresta fictícia, nem nordestina nem experimental, mas os dois ao mesmo tempo, que vamos buscar todo nosso material.