Hit a lo tsunami: Rosalía reinventa suas influências em MOTOMAMI

Sant Cugát del Valle, uma província da Catalunha, região autônoma espanhola, fica a exatos 7.176 quilômetros de Santo Domingo, capital da República Dominicana. Sant Cugát del Valle fica ainda a 8.504 quilômetros de Bogotá, capital da Colômbia. Mas essas distâncias, sejam calculadas pra jato, navio ou avião, se dissolvem quando se vê a figura neo-clássica e futurista de Rosalía, a catalã natural de Sant Cugát del Valle que, não sendo latina, organiza, seleciona, cura, recorta e constrói extrema tessitura de sons e ritmos do Sul do mundo.

Quando foi ao Saturday Night Live, vestida com uma jaqueta gigante (a que os fãs identificaram como um EDREDOM), um detalhe da sua roupa BAGGY chama a atenção diante de toda a iconografia que ocupa o imaginário latino. A túnica sobre a cabeça se torna uma imagem carismática da Virgem: ícone fundado nas passarelas mais badaladas das fashions weeks, Rosalía conecta de algum modo, sutilmente, sem sequer intencionar (quem sabe), sua imagem perolada de mensagens do futuro com a sincretizada Virgem de Montserrat, a Virgem Negra que abençoa a Catalunha. Rosalía está no centro do palco vestida com uma jaqueta/manto gigante que cobre seus braços e uma túnica sobre a cabeça, num palco iluminado por vermelha luz, cantando uma bachata típica de Barcelona. Quando exibe os dentes, no centro de sua boca está uma pequena borboleta brilhante.

Essas conexões insuspeitas entre o barroco das imagens esculpidas na baixa Idade Média, as pontes entre a Catalunha tradicional, a curadoria de sons das ruas da América e do Caribe, e a produção entre o sistema da moda e o streetwear curada nas passarelas de desfile de onde veste os lançamentos de Fendi, Dior e Moncler, ganham expressão final no mais recente lançamento de Rosalía: MOTOMAMI, seu disco de 16 faixas lançado neste março, é o grande ensaio da artista catalã sobre os caminhos do pop contemporâneo. Serve como mapa do futuro e como inventário do passado (passando por muitas colônias, heranças afro-caribenhas que cobram seu lugar nos pódios, e por tecnologias musicais periféricas que avançam sobre o poderio da indústria musical).

Golpe e contragolpe

A citada apresentação de Rosalía no SNL revelou também o single “LA FAMA”, cantado em dueto em espanhol com The Weekend, cujo falsete característico emoldura ainda mais o drama sobre fama e traição, que traz uma contradição que está na base de MOTOMAMI. Enquanto canta sobre os sofrimentos advindos da fama (“Es mala amante la fama y no va a quererte de verdad / Es demasia’o traicionera, y como ella viene, se te va”, fica a dica), a cantora aparece para milhares na noite americana e toca milhares de vezes em plays no streaming e no Youtube. O que parece ser irônico ou contraditório é, claro, calculado: a contradição, o revide, o soco em contragolpe, aparecem por todos os momentos em MOTOMAMI.

Na faixa inicial, “SAOKO” (que faz referência a ‘Saoco’, de Daddy Yankee), ela diz: “Me contradigo, yo me transformo / Soy to’a’ las cosa’, yo me transformo”. Nessa faixa, iniciada e atravessada por trechos de bebop, ela cita Kim Kardashian, fala de uma camiseta branca que se torna tie dye, das luzes nas noites natalinas, do logo da LEGO, ou sobre a ‘pámpara’ (que no jargão dominicano das ruas quer dizer o mesmo que o MEC LIFE carioca – que é o mesmo que estar endinheirado, estar por cima, estar bem) e sobre colocar uma maquiagem de drag queen e tornar-se outra coisa. É assim que Rosalía dá as bases de seu manifesto de interlocução das formas pop: sob um baixo grave, ela diz “Frank me dice que abra el mundo como una nue’/ Si me muero, que me muera por la boca como muere el pe’ /Sé quién soy y a donde vaya nunca se me olvida / Yo manejo, Dios me guía”.

Capa de MOTOMAMI, de Rosalía.

Essa música abre-alas sintetiza o percurso que Rosalía tomou nos últimos três anos: após o sucesso de El Mal Querer, de 2018, que a transformou na artista mais tocada do Spotify espanhol, que deu a ela Grammys e sucesso internacional, que transformou o flamenco em algo cool, Rosalía buscou agregar ao pop contemporâneo uma rede de influências latino-americanas sustentadas pelo que há de tecnológico e barroco que vai de Willie Colón a Armando, de Justo Betancourt a Camarón de la Isla, e que dialoga abertamente com características do pop hegemônico que vão de Björk a Frank Ocean, passando por SOPHIE ou Billie Eilish. A produção de El Guincho em 2018 já apontava para essa interlocução, mas as comunicações abertas por Rosalía se espalham de modo bem mais difuso em MOTOMAMI. A ideia de velocidade, decupada na figura da moto que invade as ruas conurbadas da América Latina, ou da moto que atravessa as cidades grandes do século XXI (como no seminal anime Akira, de 1988), serve de introdução a esse centro principal.

Essa gama de referências tem densidade na segunda faixa do disco, a metacanção “CANDY”: a música de amor que conta uma história embalada pela canção “Candy’, do duo dominicano de dembow Plan B, sampleia a melodia de ‘Archangel’, do Burial. A ponte entre o dembow das ruas dominicanas e o ambient IDM do produtor Burial na forma da canção de Rosalía, enquanto fala de amores dolorosos, insinua uma costura de uma música dentro de outra que afirmam o jogo metalinguístico. Falando de um momento em que escuta “Candy’, do Plan B, a cantora recanta com seu falsete catalão a música de Burial, apropriando-se da forma e preenchendo com sua canção uma outra.

Na Terra com mais de mil

A maior parte de MOTOMAMI traz os sons das ruas envolto pela velocidade dos carros, dos motores, de grifes europeias, e da velocidade dos TikToks que duram segundos, na rapidez do voo de uma borboleta que some como um estêncil vermelho borrado nas paredes das metrópoles. O name dropping no disco vai se espalhando com citações a M.IA., Fania Records, Naomi Campbell, a Princesa Diana, Dapper Dan, o filme Aeon Flux, e o tom do disco vai se tornando mais björkiano e estranho à forma pop em baladas como “HENTAI”, em que Rosalía não se furta a falar abertamente sobre sentar como numa bike ou meter uma sextape filmada por Spike Jonze. Foi nesse erotismo desbragado que alguém no Reddit chamou a faixa de ‘’SLUT BOP’’. A referência ao hentai, anime pornográfico japonês, foi justificada pela cantora por ser mais interessante que o pornô convencional. Na forma de uma serenata confessional levada no piano, “HENTAI” traz Rosalía falando Ya ‘te quiero hacer hentai’ enquanto tiros de metralhadora soam ao fundo.

 Além de “LA FAMA”, “SAOKO”, “HENTAI” e “CANDY”, que já ganharam clipes antes mesmo do lançamento de MOTOMAMI, hits puros do disco são “CHICKEN TERIYAKI” e “LA COMBI VERSACE”, que foram escritos em parceria respectivamente com o porto-riquenho Rauw Alejandro e com a dominicana Tokischa. São os momentos em que o deabow e a bachata ganham holofotes, junto com a reggaetonesca “BIZCOCHITO”, que soa como um hit dos anos 2000 até mesmo no vídeo, em que uma ROSALÍA de cabelos tingidos de vermelho e vestida com longas botas de couro sintético canta num cenário de branco vácuo. A reggaetonesca “DIABLO” soa alinhada diretamente como J.BALVIN ou Bad Bunny, mas com recortes para outras direções, como se os dois brotassem numa festa de PC-Music e synthpop, um desvio que desloca a forma do reggaeton e do trap porto-riquenho.

Mas diante de toda a gama de referências e influências que dão corpo a esse disco tão multi-facetado, o cover de ‘Delirio de Grandeza’, bolero do cubano Justo Betancourt, aponta para um PUNCTUM do disco que reverbera na própria memória latino-americana e afro-cubana que ele busca colocar em destaque. A busca de Rosalía, aprontando pontes por meio da língua, ganha profusão de sentidos quando se aproxima não só do popular, mas também da camada oculta onde a linguagem popular se apoia, as redes invisíveis que sustentam as bases da cultura. Quando canta um clássico bolero, cantado nas ruas entre goles de rum e tequila, localizado como um intervalo entre o trap reggaeton “DIABLO” e a experimental “CUUUUuuuute”, onde uma escola de samba brasileira é sampleada no meio de um canto flamenco e trechos que lembram Charli XCX, Rosalía mobiliza o curto-circuito da rede de conexões que ela própria ativa. É quando consegue intervir e se apropriar das fontes de onde bebe, quando as decanta de modo que parece que reinventa as próprias influências, que Rosalía alcança a novidade veloz diante de todos os motores que recolhe sem pudor de todas as partes – seja da República Dominicana, do Japão, de Cuba ou Brasil, o sentido barroco de seu disco está na apropriação e reentabulação dos próprios ritmos originários que recolhe. Ademais, sua voz preenche tudo ao redor, rouba-nos a atenção como se fosse uma voz antiga, reconhecida em sonhos perdidos da América Latina.

E no fim de tudo, quando aponta pro fim da estrada, Rosalía ainda oferece essa imagem, na faixa final, “SAKURA”: “Solo hay riesgo si hay algo que perder / Las llamas son bonitas porque no tienen orden / Y el fuego es bonito porque todo lo rompe”.

Ouça MOTOMAMI na íntegra via YouTube: