2022 pródigo em lançamentos bonitos: pra destacar esses que aqui estão, tive que abrir mão de Weyes Blood, Cate Le Bon, Dry Cleaning, Wet Leg, Perfume Genius, Fontaines D.C., Deize Tigrona, Soccer Mommy, Warpaint, Animal Collective, Destroyer, Fernando Catatau, Charlotte Adigéry & Bolis Pulpul, Naima Bock, Mitski, Toro y Moi, Kendrick Lamar, Xênia França, Putodiparis, João Gomes, Ratos de Porão, Lucrecia Dalt, Mabe Fratti, Chat Pile e grande elenco.
A própria menção dessa falta, portanto, fica de menção honrosa a esses todos que podiam facilmente substituir qualquer um na lista abaixo.
Dito isto, vamos pra cima que 2023 tem muito mais.

Jenny Hval – Classic Objects
A norueguesa Jenny Hval é conhecida por sua obra cerebral, pela multidisciplinaridade (além de cantora é produtora ela também é romancista, com alguns livros já publicados) e pela franqueza de seus versos livres, quando não pela completa estranheza de seus discos. Mas em Classic Objects a coisa parece ter invertido de lugar: a estranheza deu lugar a uma familiaridade com a forma da canção clássica, com a ternura de sua voz e com a sólida sinceridade ao falar de absolutamente qualquer traço prosaico de sua vida. Em Year of Love, ela canta sobre sua relação com o casamento após tantas questões sobre alteridade e gênero, agora numa visão por dentro do pacto patriarcal, e em American Coffee, quase um yatch rock, ela fala da relação com a própria mãe enquanto relembra uma sessão de cinema em anos passados. É a Joan Didion do art pop nórdico.

Rosalía – MOTOMAMI
Rosalía teve um ano completo de ponta a ponta em 2022: lançou um disco com sucesso de público, crítica e plateias mundo afora, fez turnê mundial, fez dancinha de tiktok, virou meme, apareceu no Fantástico, foi a karaokê com subcelebridades brasileiras em São Paulo, subiu nos charts da Billboard, virou do avesso o mundo do pop. Em Motomami, o seu libelo da velocidade e da remontagem dos ritmos latinos junto ao que há de mais idiossincrático na música ocidental e não-ocidental (do jazz ao samba, do dembow ao bolero), Rosalía produziu um rosário de hits (notadamente Saoko e Chicken Teriyaki, mas estendendo para os hits de bonus track como Despechá) enfeixados por momentos de completa interioridade (Hentai, Como un G, Sakura), ocupando um lugar isolado no imaginário e no universo do pop contemporâneo.

Jockstrap – I Love You Jennifer B
Formado por Georgia Ellery e Taylor Skye, ex-integrante da superbanda Black Country, New Road, a dupla Jockstrap é o quinhão de pop esquisito em 2022. Valendo-se de elementos eletrônicos atravessando orquestrações, harpas e canções que poderiam figurar em discos de Linda Perhacs, Joanna Newsom ou Vashti Bunyan, o Jockstrap se inscreve entre o recorte erudito e o hyperpop de modo que se torna inclassificável. Num mesmo disco equilibram uma faixa oitentista como Greatest Hits e uma caudalosa e operística faixa como Concrete Over Water, sem receio de embaralhar Harry Nilsson, Van Dyke Parks e Fatboy Slim no mesmo caldeirão e com a mesma singularidade.

Vários – Music from Saharan Whatsapp
A Sahel Sounds é uma gravadora sediada nos EUA mas focada em lançar e distribuir artistas da África subsaariana, de onde saem os sons de guitarra mais brutais da atualidade. Periodicamente eles recebem no WhatsApp áudios de músicos iniciantes que enviam seus materiais pra gravadora. O compilado desses áudios forma um mostruário da música dos tuaregs, inclusive com presença da família que parece ter recebido o bastião que outrora pertencera ao Tinariwen: o Etran de L’Air, que lançou um disco bom em 2022, chamado Agadez.

The Smile – A Light for Attracting Attention
Não é um disco do Radiohead mas também parece algo localizado no exato intervalo entre o In Rainbows e o King of the Limbs, embora também pareça apontar pra lugares onde o Radiohead parece não se interessar mais em ocupar. Fato é que a side band de Thom Yorke e Jonny Greenwood, escudados pelo excelente baterista Tom Skinner, é uma verdadeira SANDBOX onde os radioheaders podem tirar onda com o que bem entenderem. Em momentos de puro improviso rítmico, como em The Smoke, com swing de afrobeat, ou em You Never Work in Television Again, com pegada post-punk, o trio amplia a caixa de ferramentas conforme as ideias vão se deslocando de ponto a outro sem jamais se concentrarem em um lugar só. A coesão está, justamente, em produzir uma gama de fórmulas, das quais os músicos se servem sem perder suas características (há músicas que claramente soam como qualquer uma do Radiohead, obviamente, produzidas que são por Nigel Godrich), mas buscando ampliar os limites de suas próprias obsessões.

Beyoncé – RENAISSANCE
Beyoncé passou um tempo sumida desde projetos como seu histórico show Homecoming maturando tendências que estavam anunciadas aqui e pra qualquer um que tivesse de olho nas pistas entre 2019 e 2022. O funky específico de fim dos anos 70 e começo dos anos 80 tem soado de diversas formas mundo afora: dos batidões de Kaytranada à revisão do baile funk de FBC e Vhoor no Brasil, tendências periféricas finalmente são reunidas na forma da releitura afetiva da black music por Beyoncé no seu RENAISSANCE, cujo título simbólico diz muito sobre o impacto que esse disco deve ter pelos próximos anos. Como primeiro escalão das engrenagens do pop, Beyoncé se valeu de Michael Jackson, de Grace Jones, Prince, Gladys Knight, Chaka Khan e companhia pra dar forma a seus hits de pista que retomam o afrofuturismo direto dos seus tempos de muita prata estroboscópica. Virgo’s Groove e Cuff It parecem saídas diretamente do ano da graça de 1978 e Break My Soul dá choques ressuscitadores na house music do início dos anos 90.

Little Simz – NO THANK YOU
Aos 49 do segundo tempo, nos mesmos acréscimos em que SZA lançou também seu esperado SOS, Little Simz surgiu de inopinado com esse disco que balança no tom confessional ao som do completo e irrestrito chamado do R&B mais milagroso. Soando como uma Erykah Badu passando pelo filtro anos 2000 de um The Internet ou Frank Ocean, Little Simz mete o flow rápido e canta suave em Sillhouette, à la Lauryn Hill nos tempos de Fugees, e sincopa o swing em X, com beat percussivo que parece vir de algum lugar recôndito do Brasil.

Ombu – Certas Idades
O trio paulistano voltou ao estúdio após uns bons anos e dessa vez não foi pra brincadeira: convocando o produtor carioca Kassin, a banda paulistana lançou um disco que busca encaixar a forma de seu antigo real emo dentro de uma nova estrutura, que se localiza entre a influência geral brasileira que a redescoberta de Arthur Verocai proporcionou nos últimos anos na música independente, somadas às raízes cariocas de Kassin (fazendo soar sua mão de produtor já conhecida de outros discos, que vai do +2 aos Los Hermanos) e a relação com a própria forma desenvolvida pelo Ombu, com letras sínceronas de amor e outras perdas e danos. O disco então entrega faixas como Prático, Insolação e a pequena peça à la Tom Jobim Algo Novo, em que a narrativa sobre chuva e vento performam os gestos da natureza dentro da própria canção.

Bruno Berle – No Reino dos Afetos
Com um violão, um computador e um microfone, Bruno Berle produziu um disco intimista e psicodélico, com ruídos captados da casa ou da rua, em canções obnubiladas por sua voz pequena, quase tímida, mas que se impõe diante da forma minimalista e sintética. O som do violão, à la João Gilberto, toma o disco em quase todos os momentos: na faixa inicial, Até Meu Violão, o instrumento se impõe e chama o ouvinte para o centro da canção, assim como Só nós dois e a bossa-novista O Nome do meu amor.

Otoboke Beaver – SUPER CHAMPON
Não há nem muito o que dizer sobre esse disco: o certo é pegar uma lata, encher de loló, dar play e entender absolutamente tudo sem reconhecer uma palavra sequer. A banda japonesa, formada só por mulheres, são as responsáveis pelo petardo mais violento de 2022.

Alex G – God Save the Animals
Depois de passar pela lombra de término em que se intitulou como (SANDY) Alex G, o cantautor americano continua entregando discos excelentes apesar dos pesares. Ainda falando sobre amores tórridos e situações amalucadas, onde até Jesus é chamado (como em S.D.O.S.), o ponto mais próximo de Elliott Smith que ele chegou provavelmente está no hit indie Runner. Sob a superficial simplicidade da faixa, o arranjo preenche o espaço com pianos, cordas e coros, no último suspiro do folk rock nos anos 20. Ademais, Alex G se impõe com esse disco num limiar entre canções mais pop sem abrir mão de sua natural estranheza.

Áurea Martins – Senhora das Folhas
Aos 81 anos, Áurea Martins, antiga cantora de rádios e sambas clássicos, lança um disco atual e apoteótico: Senhora das Folhas, produzido por Lui Comba, traz canções de nomes distintos como Flaira Ferro, Arlindo Cruz e Projota sob a voz ribombante da cantora. O disco, uma homenagem às rezadeiras e benzedeiras Brasil afora, circunda os modos do ritual e expande as possibilidades sonoras com arrojada instrumentação, somando elementos eletrônicos a percussões e orquestrações. Vale ouvir mais essa senhora da MPB que resiste, e cabe mencionar junto a ela o importante disco de Alaíde Costa, O que meus calos dizem sobre mim, também lançado em 2022.