Igapó de Almas chega minimalista ao terceiro disco

Foto: Marina Mole

Um paradoxo é uma sentença que ao enunciar algo se contradiz de pronto: na própria frase estão a negação e a afirmação, dispostas como as duas faces do teatro (um rosto triste e um rosto sorridente que não vivem separados), ou os dois gumes de uma faca. É nesse moto contínuo de impossibilidades e possibilidades que o Igapó de Almas lança seu terceiro disco, Mar de Paradoxos, num ano e num momento em que o mundo passa por diversos paradoxos – e em que as vozes e discursos diversos submergem e emergem com a exata mesma velocidade. A banda natalense, que começou no início dos anos 2010 como um projeto de Pedras Leão, afiliado a uma nova corrente de música da floresta que incorporava células rítmicas de tribos indígenas do Acre e de povos amazônicos, mesclado à música nordestina e aos sons eletrônicos, chega agora ao terceiro disco totalmente entregue à contemporaneidade; o paradoxo aqui, no entanto, também ergue os braços sobre a linguagem que o grupo apresenta, e enquanto uma vertente se abre para o futuro, outra se volta para o primordial da experiência musical, como nos ritos sagrados: a sedução pela voz e pelo tambor.

O minimalismo do Igapó de Almas é mimetizado pela primeira faixa, “Me Deixa Diluir”: na forma de um samba torto levado no som oco de uma moringa tocada por Ayira (que faz sua estreia em disco junto ao Igapó desde que ingressou na banda, em 2018) e na voz tremida de Pedras Leão, a canção de abertura avisa que “o mar não tem cabelo pra você se segurar” (uma frase que muita criança escuta dos pais quando está afoito no mar). A faixa, com sua economia lírica e seus violões dialogando com sintetizadores, se parece com o novo samba paulista de um Rômulo Fróes ou Kiko Dinucci, mas com um tom ritual que só as diversas entidades da floresta ensinaram ao Igapó de Almas.

A faixa seguinte, “Ijira”, é uma composição da atriz Alice Carvalho, em rara incursão como cantora em um spoken word entre tambores que criam um baião hi-tech, entre, mais uma vez, diversos riffs de sintetizadores e guitarras distorcidas. A irônica letra diz que “se Natal não consagra / cê migra / que o Sudeste é a mão amiga”, e cobra de quem deve com muita veemência – o discurso político direto (citando a familícia que te faz de refém) enriquece essa voz que se soma ao mar verbal que o disco aponta. A presença da cantora Bex em “Paraglider” traz uma face Massive Attack ao Igapó de Almas que legou à cantora uma intensidade no triphop que até então ela ainda não havia alcançado. É certamente não só um dos destaques do disco, mas da carreira da jovem cantora até agora. E para fechar as participações, Tiago Terras, que foi vocalista do Igapó entre 2014 e 2018, e Netuno Leão participam das faixas “Gotas de Tempo” e “Água Água (Passa)”, respectivamente.

Capa do álbum Mar de Paradoxos

A relação com a voz (e principalmente com as vozes dos próprios membros da banda) é um dos diferenciais de Mar de Paradoxos em relação a A (2014) e Laborioso Vinho (2018), apresentando inclusive uma unidade, uma completude que o Igapó de Almas até então não tinha alcançado. A voz, instrumento desafinado e que vai sendo acompanhado por ruídos e harmonias intricados aqui, surge com mais proeminência talvez para desaguar diversas percepções que antes não entravam na estética do grupo com papel essencial: a palavra das ruas, os comentários políticos, a poesia abstrata, as palavras em inglês, os sussurros. Junto a essa integração das vozes, os arranjos antes coalhados de ruídos e samples agora se ata mais à organicidade e minimalismo de instrumentos percussivos, violões e guitarras.

Para além do minimalismo, há influências ocultas e insuspeitas nesse terceiro disco que vão desde o trap (como no beat de “Sertão Maldito”), a um autotune digno daqueles usados por Kanye West no seu Yeezus (2013) (como na faixa “Gotas de Tempo”, uma insuspeita toada de maracatu cantada em dueto por Pedras e Tiago Terras), até ruídos vanguardistas que se parecem coisas de Arrigo Barnabé (como em “Criaturas de Sal”). Por meio desse caldeirão, pode se entrever a influência dos novos membros do grupo: as presenças de Rafael Melo, Artur Porpino e Aiyra dotaram de mais complexidade percussiva e instrumental as composições (por acaso, os três tocam percussão ou estudam expressões musicais percussivas, inclusive academicamente). Os três cantam em algumas faixas e deixam marcas de seus projetos pessoais no grupo – como na faixa “Jellyfish”, canção cantada por Porpino e que poderia figurar no repertório tanto do Sample Hate quanto do Fukai, duas bandas integradas pelo músico.

Além dos citados, o disco contou com a produção musical assinada por Pedras e Rafael Melo, e direção musical por Pedras, com gravações nos estúdios Cigarra, Janela, Jangada, Vovó e Seno (importantes casas de produções potiguares – todas caseiras, inclusive). A produção executiva (participando de todas as etapas, da gravação ao desenvolvimento da identidade visual e de toda a estética, como uma curadoria interna) e participações na composição de duas faixas, além de tocar sintetizadores em outras, de Henrique Lopes, mixagem e produção final por Walter Nazário. Walter, inclusive, era membro do Igapó de Almas até 2018 e retorna agora à parceria com o grupo em nova chave, mas mantendo o mesmo entrosamento anterior. Gabriel Souto, outro parceiro de membros da banda em outros projetos (como em Luisa e os Alquimistas), auxiliou também na mixagem, em trabalho de finalização junto ao grupo, e a masterização ficou a cargo de Cris Lander. Com apoio da Lei Aldir Blanc, o disco sai pelo selo Rizomarte Records, com capa desenvolvida em xilogravura por Gustavo Rocha e com fotografias da banda por Mariana Mole.

Mar de Paradoxos é um triunfo do Igapó de Almas e seu experimento de um modelo de composição que recolhe as vozes e os tambores como duas tecnologias sonoras que não cessam de se renovar – nunca uma voz cessa de dizer algo redivivo, por suas próprias desafinações e variações rítmicas, e os tambores, por sua vez, também não cessam de narrar algo enquanto vibram ou ditam a levada de uma canção. Duas ferramentas rituais, esses dois instrumentos ativam também o paradoxo: nada soa de modo unívoco, é possível que tudo se transforme em outra coisa no momento em que entra em contato com o ouvinte. Mas essa recepção e esse contato para o ouvinte do Igapó de Almas só tendem a falar fundo, como o som de um tambor grave cuja vibração ocupa todos os espaços.