Da Ribeira ao Imirá, da beira da praia às arenas, os festivais independentes de música de Natal saíram dos largos esquecidos do centro urbano da capital para se tornarem Patrimônio Cultural Imaterial do Rio Grande do Norte – os festivais a que me refiro são, pudera, Mada e Dosol, e já chegamos no pico do ano em que a temporada se inicia e em que as duas datas se sucedem.

A primeira parte passamos nesse último fim de semana: o Festival Mada celebrou a vigésima sétima edição consolidando seu formato no Arena das Dunas, focado na música pop brasileira e com uma sofisticada surpresa pra quem se aventurava nos aneis superiores do estádio. Mal e mal, há ainda um problema crônico de como fazer o artista no palco soar bem pra todos os lados do ambiente, que não deve ser necessariamente competência ou tecnologia, mas um problema de LOCUS. Mas nada que vilipendiasse a experiência da multidão, disposta a qualquer coisa, de entrar em roda de pogo a chorar no ombro alheio.

Medalhões & medalhinhos

Termômetro do pop brasileiro, o lineup do Mada trouxe figuras candentes do eixo mainstream-indie do país: Marina Sena, Rachel Reis, Melly e Liniker, notadamente, foram as principais faces dessa fatura. Pontuo, nessas, os de Marina Sena e Rachel Reis, que despontam como destaques do festival. Marina Sena, em especial, apresentou um show robusto, passeando pelas três fases da carreira dela até agora, mas lançando luz na conexão entre De primeira e Coisas Naturais, em que sua verve compositora devotada à tradição da MPB é mais fluente. Ao vivo, a capacidade da cantora encenar e produzir imagens, se multiplicando nos visualizers e no centro do palco iluminada por uma luz amarela como nos crepúsculos, a segurança, a voz e a organicidade dos arranjos de banda dão a dimensão de seu amadurecimento e do espaço que granjeou no imaginário pop brasileiro. Show interessante pela estrutura e pela cadência, Marina Sena cria um arranjo complexo de seu mundo tropical e meio futurista, de modo muito particular. Rachel Reis também evoluiu muito em pouco tempo: o show é for real de arena, pra massas, cheio de ginga e swing, carisma & sinergia com um público vidradaço.

O Mada trazia como headliner o projeto Dominguinho, formado por João Gomes, Jota.pê e Mestrinho, cuja fanbase é formada por um espectro amplo da sociedade brasileira: de millenials chegando na meia idade a casais já grisalhos, de forrozeiros a rockeiros, de fãs de Marina Sena a fãs de Don L, o público concentrado pro projeto dos três camaradas ali não era de muitas concessões. A não ser a concessão principal: aceitar passar mais de hora e meia vendo uma mímesis de especial de fim de ano da Rede Globo, com cenário simulando casinhas coloridas da zona rural, com medleys de toda sorte de sucessos de rádio que não podem faltar em qualquer roda de violão encampada por um litro de 51 já indo na metade. Apesar da boa vontade dos músicos, principalmente do virtuoso Mestrinho, o projeto, já de caráter efêmero como as silhuetas de isopor pintadas como casinhas no palco, talvez funcione num palco menor, com luzes mais baixas, com a pedra da paciência que um festival com dezenas de atração nem sempre concede. O momento mais elétrico do show foi quando, após uma sequência de sucessos de Belchior em ritmo rockabilly, João Gomes revelou, meio embriagado, seu desejo incontido de descer naquele ‘tobogã de areia’ que há na praia de Ponta Negra (ele se referia ao Morro do Careca, sem saber, pelo visto, que estava desejando um crime ambiental).

Don L, na sexta, ainda parece estar aquecendo as bases de seu novo show. Talvez o horário também não tenha ajudado (o foco fica difícil pra qualquer um depois das 2 da manhã e de muito forrozinho no pé do ouvido). Em outra face, no sábado Mano Brown amassou com diversas faces de sua carreira (relatos de outrem, o repórter não é mais tão jovem e não segurou até o final no segundo dia).

o Baiana System, presente há quase 10 anos no line, não há muito o que falar além da já conhecida sequência de rodas de pogo e palavras de ordem, sucesso garantido de público.

O bicho pegava, entretanto, nos sub-headliners…

Pressão & grave

Embora fosse assumidamente paralela, a programação do baile da Amada, como um segredo na parte superior do estádio, era um oásis de novidade dentro de um festival num geral instagramável e construído no clamor popular. A parte contracultural, o lado que honra a noite potiguar, uma fração do combo de referências e conexões da cultura clubber natalense fizeram as honras da casa.

Nesse palco, a baiana Jadsa, autora de um dos grandes discos de 2025, apresentou na sexta-feira o show de seu Big Buraco, passeando pelo disco anterior Olho de Vidro, e mostrou o motivo de ser ela um dos nomes mais importantes da nova música brasileira. É reggae, é jazz, é Itamar Assumpção e é também ela própria, Bahia intensa resumida na cadência de riffs, no esparramar de canções radiofônicas, por vezes, ou na estranheza de uma canção elíptica.

Destaque central pros DJs potiguares que deram um panorama breve do que é o grande universo clubber de Natal: Jennify C., Tinoc e Brisa mostraram diferentes faces da e-music praticada no RN. Não são quaisquer DJs e não é coisa pouca: sons sofisticados, curadorias criativas, interação e recriação de pistas. E destaque também pro set brutal de D.Silvestre, representante do funk paulistano.

O rapper Febem subiu ao palco na sexta já no início da madrugada mas fez parecer que a noite havia sido resetada. Flow solto, clima de balada, a sensação de que você está dando um rolé de low-ride nas ruas de SP, o enigma noturno e muito bate cabeça. Tudo o que Febem traz do rap clássico de São Paulo é também o que ele consegue reformular: narrativa rápida e concisa, urgência das grandes metrópoles. Destaque do festival como um todo e do rap brasileiro em extensão.

Do mesmo modo que Febem, outro grande show (e, pra mim, o melhor de todo o festival), foi do rapper paulista Edgar. O início do tropel foi com uns bons minutos de improviso de dub na escaleta, acompanhado pelo DJ Kazvmba e pela backing vocal Mathilde, e daí em diante foi uma sequência de versões e improvisos em cima de bases do último disco, Universidade Favela. Mathilde, que acompanhava nos refrões e em inserções dentro das faixas, lega uma experiência distinta à voz algo caricata de Edgar ao vivo – por vezes, é como se Julia Holter ou Julianna Barwick harmonizasse arranjos vocais com Tom Zé. Show fabular e calculado como um dub arrastado, foi experiência à parte dentro do festival.

A prata da casa brilha muito mais

Nota final só pra dizer que os nomes natalenses foram as maiores finesses de todo o rolé, frise-se.

Primeiro, Dani Cruz sobe ao palco com seu disco lançado no início do ano, Canto de Sol, com uma banda experiente e experimentada, e defendeu com muita firmeza seu som brasileiro, enfeixado de sambas e canções que passeiam pelo jazz. Intérprete segura, presença fortíssima sempre.

Contrastando com alguma leveza no som de Dani Cruz, o MC RB KBLZ estreou no palco do baile da Amada levando o mais profundo do som das periferias natalenses. Sem pudor algum, sem meias palavras – xereca pra lá e pra cá, quebração de cama box e muita sentada pra cima e pra baixo, o grave altíssimo à beira do ensurdecimento, é expressão dos bailes natalenses frequentados por diversas classes, e com trânsito por tecnologias sonoras integrantes da nova música eletrônica nordestina (variação e aplicação das novidades do brega funk, mas também de um modelo potiguar cheio de manha, distinto do pernambucano, por exemplo).

As duas principais atrações potiguares não apenas fizeram shows marcantes para essa edição do Mada como também para a história do festival. O destaque principal foi a apresentação histórica da Sourebel, banda originalmente de reggae e que passeia por diversos estilos da música negra, enquanto narram e reportam o que se fala e o que se sente nas periferias de Natal, da Zona Oeste à Zona Norte, que completa 10 anos e destaca o palco do Mada como epicentro dessa celebração. A dedicação no palco faz vislumbrar uma execução única, sem precedentes, endereçada para preencher aquele dia em específico – o show da banda, com experiência em diversos palcos, teve sopros e participações especiais de Gracinha, Ale du Black e Cami Santiz, e passeou pela carreira da banda como mostra de uma trajetória, de uma travessia que encontrava o outro lado justamente nesse grande palco. A beleza toda está não só na celebração que premia os integrantes depois de tantos anos, mas na forma como essa doação ao público traduz a expressão de uma identidade construída anos e anos até encontrar sua forma final ou completa, substantiva. Quem viu esse show de Sourebel conseguiu ver todos os 10 anos da banda de uma vez só, na melhor forma.

O outro destaque é o fenômeno Taj Ma House. Depois de girar pela Europa, depois de arranjarem as vozes com sofisticação, o produto mais bem acabado da cena clubber potiguar é aquele que também consegue fazer confluir a própria história da música eletrônica no RN. Há pelo menos duas gerações da música potiguar ali; em especial vide o papel de mestre de cerimônias que Frank Aleixo, o Pajux, compõe dentro do quarteto – ele próprio é pioneiro da música eletrônica no estado, testemunha e agente de diversas festas, gravações e etapas do eletro feito em Natal. Clara Luz, advinda da Orquestra Boca Seca e da soul music natalense, parece vir direto da Chicago mental em que o Taj Ma House forja sua sonoridade. Janvita e Elisa Bacche surgem da mesma etapa cultural, pós anos-2015, em que a ocupação do Beco da Lama, as festas do Clube Underground do House, diversos projetos eletrônicos até culminar com a construção do Clube Frisson, convergem num mapeamento do que é o som clubber feito nesse lado do mapa. Ver o Taj Ma House é encontrar em paralelo as diversas fases da e-music por aqui, mas também entender o que é o house music como um todo: o sublime da noite extrema, a vontade de unir as vozes, o espectro da liberdade, as palavras de ordem que conduzem ao transe. No final, saída dos escombros e das noites mais longas, o convite do Taj Ma House é pra vislumbrar alguma luminosidade, uma surpresa.

Fechando a conta

O Mada, esse patrimônio imaterial, abre alas pra fase de festivais independentes natalenses e mais uma vez desponta como destaque pop. Mas a dica é: suba para o baile da Amada, é lá que o bicho pega.

Uma resposta para “MADA 2025: Festival chega à 27ª edição com destaque para a prata da casa”.

  1. Curti demais o texto. Principalmente duas coisas: 1. não ter só dois parágrafos e um monte de fotos gigantes ocupando espaço na minha tela; 2. o fato de não ser só elogios. Meio cansadão de ler que todo mundo é genial e todo festival é maravilhoso.

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