Neo-Vanguarda Paulista: Jadsa estreia com Olho de Vidro

Foto: João Meirelles

Poucas vezes a influência direta do cantor e compositor paulista Itamar Assumpção é notada na música brasileira. Falo daquela influência rastreável, em que é possível que o ouvinte prediga os passos que o artista percorreu pra chegar à forma final de seu trabalho. Ou seja, que você escute algo e aponte de onde aquela sonoridade, textura e formato vieram.

Por ser singular, a obra que Itamar produziu nos anos 80 junto à banda Isca de Polícia não se assemelhava diretamente nem com seus pares da Vanguarda Paulista e nem com os nomes futuros da música brasileira – por absorver o reggae, o rock, o samba, o rap e a canção brasileira junto à poesia falada, o compositor conseguiu criar um gênero quase à sua forma e semelhança. Sua figura totêmica acabou simbolizando um formato de compor uma canção que só ele próprio parecia dominar (mesmo suas filhas, Anelis e Serena, guardam poucos traços diretos da obra do pai em suas produções). Mas eis que em 2021 uma baiana chega carregando consigo uma marca galvanizada da canção itamarassumpçãoniana: Jadsa Castro traz em sua estreia, Olho de Vidro, lançado pela Balaclava Records, uma elaboração da Vanguarda Paulista estabelecendo linhas de fuga e relação com seus próprios contemporâneos.

Capa de Olho de Vidro, estreia de Jadsa

Com sua guitarra cadenciada e sua forte voz, a cantora baiana estreia com produção de João Meirelles e secundada por participações de Filipe Massumi (violoncelo), Filipe Castro (percussão), Caio Terra (baixo), Bianca Predieri (bateria), Aline Falcão (teclados), Marina Melo, Marcelle e Raíssa Lopes (vozes). No disco, a dita rara conexão direta com Itamar Assumpção aparece inclusive na faixa-título: a referência re-cantada a “Nego Dito”, faixa cabal de Beleléu, Leléu, Eu (1985) é como invocação e benção. Mas essa influência maior não limita o som de Jadsa: os reflexos mais claros dessa orientação com base em Itamar estão em “Sem Edição”, “Mangostão” e “Selva”, mas as vozes de gente como Ava Rocha, Ana Frango Elétrico e a conexão com a obra de nomes como Negro Leo, Metá Metá e o conterrâneo Giovani Cidreira entabulam esse diálogo extenso com seu próprio tempo. A presença da também baiana Josyara em “Run, Baby” e a homenagem-diálogo com Luiza Lian em “Lian” refratam essa leitura que Jadsa empreende de seu próprio tempo usando os elementos da vanguarda paulista para elaborar essa revisão.

Ademais, a poesia de Jadsa, urbana e sintética, buscando a sonoridade da palavra e da frase se apresenta desde a faixa inicial, “Mergulho”, cuja letra sobre a saudade do mar se abre para uma poesia com sotaque de literatura marginal dos anos 70. Em “Já Ri” a busca por essa sonoridade da palavra é ainda mais intensa, de modo leminskiano.

Para além do rastreio e estabelecimento dessa teia de relações, a música de Jadsa apresenta sua voz forte que se desdobra em várias modalidades do canto de modo muito sutil. Talvez na intricada rede de suas composições, onde outras vozes e outros moldes da canção vão se aglutinando e se reproduzindo, a singularidade da voz de Jadsa não se apresente em totalidade. Mas é em faixas como “Nada” que a baiana dá corda na elasticidade de seu canto. Aliada a esse vocal muito próprio, a guitarra minimalista e hipnótica que aparece em todo o disco é outro traço distintivo: apenas um riff breve e agudo se repete durante toda a faixa, como em “Fora, Marte”, “Lian”, a própria “Nada” e a faixa-título, “Olho de Vidro”. Jadsa conecta a guitarra do afrobeat à guitarra do dream pop e estabelece relação ainda com uma nova guitarra brasileira, de um Catatau, um Siba ou de um Kiko Dinucci.

Na esteira de novos nomes da música brasileira, Jadsa Castro busca em sua estreia um caminho que parecia não transitável até então. Conseguindo ligar vários momentos não-convencionais da música brasileira (nova e antiga), a cantora produz um som urbano seduzido pela palavra, sem se deixar catalogar como rock, a tal da MPB ou qualquer outra coisa. Fato é que Jadsa segue os sinais que a entidade Itamar dissera anos atrás, na faixa “Milágrimas”: siga todos os sentidos, faça fazer sentido.