Foto: Divulgação

Carioca de São João de Meriti (RJ), antes de se tornar Gracinha, Isabela Graça foi do sagrado ao profano. A prática do violão que ganhou de um tio foi usada na banda espírita do grupo religioso que sua família frequentava. Já em 2017 fundou junto com mais quatro amigas, a banda demonia. Banda de punk rock feminista que a levou ao estúdio Costella, em São Paulo, para gravar o EP Achei Que Era Homem Mas É Só o Satanás, lançado pelo selo paulista Flecha Discos em 2019. Ao mesmo tempo fez parte da ARDU, banda de chillwave tropical baseada em Natal, lançando o álbum Solto (Ou Guia da Cidade Invisível), em 2018.

Quem ouviu/viu o papo que batemos com Isabela, agora Gracinha, e já vem acompanhando a carreira solo dela, deve sacar o conteúdo do álbum Corpo Celeste que foi lançado. Um disco cheio de significados pessoais como é possível ver no faixa a faixa que fizemos com ela e até pela arte da capa do disco assinada por Andressa Dantas.

Corpo Celeste foi criado sem pressa em um período de mais de um ano, mas existem composições de 2017. Em meio a letras que falam de processos que Gracinha passou para se tornar quem ela é hoje, há música em homenagem ao tio e ao próprio espaço sideral como um campo a ser descoberto e conquistado que resume bem todo o caminho trilhado até chegar ao álbum: uma jornada pessoal afrodiaspórica.

O disco foi gravado nos estúdios de Ian Medeiros e João Victor Lima e faz parte do projeto Incubadora DoSol. A banda de Gracinha é composta por Rodolfo Medeiros, Pedro Lucas Bezerra, Mateus Tinoco e João Victor Lima.

Ouça Corpo Celeste e leia o faixa a faixa.

Corpo Celeste por Gracinha

Vênus (estrela d’alva)

Essa música nasceu de um poema onde exponho sentimentos que sintetizam o motivo do álbum se chamar Corpo Celeste. Sempre fui fascinada pelo espaço sideral e o disco em sua completude permeia esse tema, fazendo uma analogia em relação a um corpo celeste que flutua no espaço sozinho, mas que ao mesmo tempo faz parte de um todo. E que pode já ter até desaparecido na sua linha do tempo, mas aqui na terra sua luz ainda brilha anos-luz depois. Essa analogia faço com minha vivência enquanto mulher negra que demorou muito tempo pra entender um estado de solidão que o mundo nos coloca enquanto pessoas racializadas e para descobrir minha luz própria. Por ela ter uma estrutura diferente das outras canções do disco, ser mais curta e não possuir instrumentos orgânicos, apenas voz e sintetizadores, e sintetizar muito bem esse sentimento supracitado, fez todo o sentido que fosse ela a escolhida para abrir o álbum. Inicialmente pensei em nomeá-la corpo celeste, homônima ao disco. Mas decidi por chamá-la “Vênus” que é a primeira estrela que aparece no céu pelas manhãs, e optei por colocar o nome “Estrela D’alva” também, que é um dos nomes pelo qual esse corpo celeste é conhecido e me lembra meu tio Curuca, que faleceu em 2013 e sempre me apoiou enquanto musicista. E além de ser um grande fã da Dalva de Oliveira, também escutava constantemente a canção “As pastorinhas”, que diz: “A estrela d’alva. No céu desponta. E a lua anda tonta. Com tamanho
esplendor”. Pra mim é uma memória afetiva muito forte e foi a forma que encontrei de homenageá-lo.

Fantasma

“Fantasma” é uma das músicas mais antigas entre as composições desse disco, acredito que a compus em meados de 2017 e ela parte de uma experiência muito pessoal de uma rápida relação que eu tive e acabei levando o famoso ghosting, onde a outra pessoa apenas some no lugar de prover um fechamento real para a relação. Eu já vinha de uma outra relação onde a pessoa também tinha sumido dos meus dias e estava pensando muito sobre isso. Peguei o mote da analogia entre a literalidade da tradução da palavra com experiências mediúnicas e ectoplasmáticas.

Farol

Essa canção também surge de uma experiência bastante pessoal. Quando em dado momento conheci uma mulher no ônibus por quem fiquei encantada de imediato, mas não a conhecia pessoalmente. Um tempo depois descobri que ela era amiga de uma amiga e acabamos nos aproximando. Desse encontro vieram os versos “eu quis fazer uma música sobre você / na primeira vez que eu te vi”. Porque mesmo antes de conhecê-la, na primeira vez que a vi, me veio a vontade de fazer essa canção. E depois por acaso ela acabou, de certa forma, entrando na minha vida, e daí surgiram os versos do refrão: “no acaso que eu te vejo / daqui eu te desejo”. Essa música foi a primeira que gravei de forma despretensiosa antes mesmo da banda surgir, junto com joão, que toca guitarra na minha banda querida.

Tamarillo

A fruta que dá nome a música, tamarillo, é uma fruta agridoce, e agridoce resume muito bem o sentimento de onde veio a canção. O sentimento de dualidade que surge junto do meu processo de aceitação enquanto mulher que ama outras mulheres. Porque foi um momento, apesar de doloroso, muito feliz pra mim, porque eu finalmente estava conseguindo aceitar algo que fui pressionada a lutar contra por toda minha vida até então, mas ao mesmo tempo eu não deixei de ser uma pessoa racializada, que lidou com o sentimento de solidão por muito tempo e que estava vivendo experiências de forma tardia e que sofreu com a rejeição. uma rejeição que é muito clara de onde vem, que não é experienciada por mulheres brancas, por exemplo. A rejeição que vem acompanhada do preterimento. Decidi por inserir um sample da Maya Angelou recitando um poema que inclusive tenho tatuado há mais de dez anos, onde ela diz que apesar das adversidades que o mundo nos impõe enquanto pessoas racializadas, ainda assim iremos nos levantar. Porque apesar dessa tristeza que veio atrelada às rejeições, a esperança parece ser inerente e eu não abaixarei minha cabeça.

Quem Que Você Pensa Que É

Essa música surge da literalidade da beleza que eu senti ao me relacionar com outra mulher. Que de tão bonito que se fez, foi melhor que sonhar: “eu não quero sonhar e perder um minuto se a realidade é bem mais bonita”.

Gigante

“Gigante” surgiu de um sonho que eu tive em uma noite e que continuou vívido na memória ao acordar. Ela também fala sobre meu processo de aceitação, e do medo que eu tinha de me assumir de fato. E que no sonho parecia tão fácil viver quem eu era. Ao contrário da letra de “Quem que você pensa que é”, onde eu não queria dormir pra não perder a realidade, eu digo que que não queria acordar, e preferia ficar sonhando, vivenciando esse mundo onde eu se me sentia tão potente e gigante. Criamos por acaso os arranjos dessa música, Mateus (que toca synth e é responsável pelos samples e beats) começou a fazer uma improvisação
que casou perfeitamente com a harmonia que eu já havia criado pra essa música.

V.O

Eu me graduei na UFRN e em um dia no campus vi uma placa que cortava o “piscinas” de “piscinas olimpícas” e substituia a palavra por “vaginas”, na mesma hora eu pensei na frase “saltos ornamentais em vaginas olímpicas”. Depois me veio uma melodia na cabeça que ficou impregnada e a partir disso fui construindo os outros versos da canção. Ela acabou enveredando por um caminho que narra a minha dificuldade na hora de me relacionar. Na música eu falo sobre vaginas a partir de um recorte pessoal de um período da minha vida. Mas acredito que a canção não se resume a relações com mulheres com vaginas porque minhas relações também não se resumem a isso, e acredito que também não venha a resumir as relações de quem for escutar a música e porventura se identificar com ela.

Cuéntame

“Cuéntame” foi o primeiro (e único) single do álbum, lançada ainda em janeiro de 2024, e foi a composição mais recente também. Ela vem de um lugar de angústia, de algo que você quer muito que fique, mas sabe que vai além dos seus esforços fazer ficar. Isso eu deixo claro na variação entre os primeiros versos e os últimos, onde a resposta da pergunta do início muda de “nunca” pra “volta”. É um conflito interno, você sabe que tem que abrir mão de algo que não quer. “Cuéntame” é pra mim uma grande sinestesia onde uma canção evoca esse sentimento de angústia e melancolia.

Inferno Astral

Essa foi a primeira canção que eu fiz pro disco, sem saber que era pro disco, não havia nem vislumbre de “Gracinha” na época (ou havia um vislumbre porém bem distante). Compus provavelmente em 2016 ou 2017 quando eu me vi perdida em uma das primeiras paixonites por outra mulher e querendo viver essa relação. Eu narro como foi arrebatador pra mim esse sentimento, e também revelador. Tanto que não conseguia mais esconder de ninguém, nem de mim própria. E por ser algo muito novo falo em ser “uma sina do que eu nem vivi mas que me persegue feito um cão”, porque apesar de ser algo novo, era algo que sempre
existiu em mim e eu sabia. E para além disso eu também faço essa analogia com os signos, já que a pessoa que foi o ponto de partida dessa canção era de aquário e eu sou do signo de peixes (dizem), e segundo a astrologia um é o inferno astral do outro. Ela veio também como uma declaração dos meus desejos por essa pessoa.

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