A Firefriend não para. Há 16 anos na estrada, Yuri Hermuche (guitarra, voz), Julia Grassetti (baixo, voz, teclados) e C. Amaral (bateria, synths) formam uma das bandas mais interessantes da cena independente brasileira. Papas do shoegaze nacional? Pode ser, se você quiser. Mas a real é que analogias religiosas não combinam muito com o modus operandi contracultural do trio, que faz do amor pela música uma forma de experiementar o mundo, e da conquista da voz própria o único horizonte possível.

Baseado em São Paulo, mas cultuado por público e crítica na Europa e no Reino Unido, a Firefriend conseguiu o raro feito de construir e manter uma carreira apostando principalmente na força e no cooperativismo da comunidade underground planetária. Longe dos esquemas mercadológicos que não raro transformam talentos em hypes sazonais, seguem sem planos de pisar no freio. Um ano após lançar o ótimo Dead Icons, eles acabam de adicionar dois novos títulos à sua longa discografia: Blacklisted e Real Time Fantasies, duas coletâneas de raridades, demos e jams. O material é só uma fração do arquivo da banda, que já tem um novo álbum de inéditas – Decreation Facts – pronto pra sair ainda este ano.

Aproveitando a ocasião dos lançamentos, conversamos com Yuri sobre volta aos shows, o processo de seleção das faixas para as duas coletâneas, plataformas de streamings, e estratégias de sobrevivência no underground.

Confira a seguir:

Revista O Inimigo: Cara, antes de tudo, preciso te dizer que um dos últimos shows que fui antes da pandemia bater foi o de vocês, e foi uma memória boa que levei pro isolamento. Como foi esse período de quarentena pra vocês?  

Yuri Hermuche: Esse período foi muito doido. Isolados da sociedade e dos shows, assistimos os acontecimentos filtrados pelas redes sociais, televisões… esse ruído ensurdecedor de um mundo que está se transformando radicalmente — nós nos perguntamos bastante o que estamos fazendo aqui? — o que queremos realmente fazer de nossas vidas nessa sociedade doente em que a vida perdeu qualquer valor? Onde a arte é tratada como lixo e o lixo é tratado como arte? O que fazer em um mundo onde Trump e Bolsonaro foram presidentes de países gigantes? Onde hipocrisia e destruição são lei? A resposta era sempre essa: resistir. Você tem que investir a sua energia nas suas escolhas, ou você será engolido e apagado. Nós somos uma banda de rock, nós vamos tocar e fazer nossos discos viajarem por aí. Por mais que os apresentadores de TV e os atores das campanhas publicitárias fiquem sorrindo, a verdade é que estamos em guerra e a vida pode acabar a qualquer momento, seja covid, bomba atômica, presidentes fascistas. Então vamos atrás do que queremos, AGORA. A quarentena foi uma experiência radical para todos nós. Encontramos uma força mantendo nossos ensaios regulares e lançamos um disco chamado DEAD ICONS, que saiu em LP em 2021, e agora vamos lançar um novo disco, chamado DECREATION FACTS, que também deve sair em LP até o final do ano.

Além de ser uma banda que produz muito, vocês sempre tocaram bastante tanto aqui em São Paulo quanto fora. Como tem sido reconstruir esse caminho no pós-pandemia, com tantas casas fechando, restrições de viagem, etc? O Hotel Bar, por exemplo, que era um lugar onde eu sempre via vocês, foi um dos que fechou durante a pandemia.
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Tem sido sensacional — porque nós crescemos ao redor de shows, palcos, esses ambientes são parte de quem somos. Então, depois de 2 anos parados, voltar a fazer isso é perfeito, estamos de volta construindo nosso caminho. O Firefriend existe há 16 anos, nós já vimos muitas casas abrirem e fecharem. Nós estamos reconstruindo essa rede, como a sociedade também está tentando se reconstruir. Nós somos parte da cena de rock de São Paulo e vamos seguir em frente, com todas essas bandas. Há uma energia muito boa nos shows, fizemos dois aqui em São Paulo este ano e sexta 08 julho vamos tocar na A.C. Cecília.  

Eu tenho impressão que o som de vocês tem uma dimensão espacial – digo tanto no sentido do som “preencher” o espaço na hora da execução, quanto dos espaços internos da música, silêncios e diálogos entre os instrumentos. Me interessa muito saber como acontece o encontro inicial entre vocês três, seja numa jam no estúdio ou ao vivo.

Nós somos viciados em música e há alguns elementos fundamentais, como dinâmica e texturas, usados por muitos artistas para criar ondas realmente especiais. Nós nos interessamos por essas ideias, e elas acontecem meio que naturalmente quando tocamos. Também estamos todo o tempo atentos ao que cada um está trazendo para o som. Depois de todos esses anos tocando juntos, o que fazemos é naturalmente um reflexo dessa soma, do que cada um joga na mistura. É incrível quando vejo uma banda com identidade, com um som próprio. É isso o que queremos alcançar.

A Firefriend tem uma discografia bem longa, acho que desde que vocês começaram raramente passa um ano sem que vocês lancem algo. Por que duas coletâneas de raridades agora?

Música é um estímulo para a mente, ela cria deslocamentos, faz conexões surpreendentes entre memórias e emoções, faz você viajar sem sair do lugar. Um novo disco é como uma nova aventura, uma biblioteca, uma nova cidade por onde você pode andar e descobrir cenas interessantes. É eletricidade pura, para encarar a vida. Então não existe hora certa para lançar um disco, ainda mais em um mundo com tantos canais de distribuição e tantas bolhas. Tenho certeza de que qualquer disco que já lançamos mal começou seu caminho. E nós ensaiamos muito e gravamos todos os ensaios regularmente há bastante tempo. Também fazemos muitas jams. O material dessas coletâneas é só uma parte do que está guardado e tenho certeza que selecionamos essas músicas porque são as frequências que estão no ar agora. Por sinal, hoje recebemos a confirmação de que essas demos serão lançadas em vinil também.  


 Tem rolado uma fetichização do vinil, com majors voltando a prensar LPs, e selos reeditando títulos fora de catálogo em edições luxuosas e caríssimas, sem falar nos sebos jogando os preços lá pra cima. Enquanto isso, os artistas independentes que sempre mantiveram o formato vivo são empurrados pro fim da fila nas fábricas de prensagem que já não conseguem dar conta da demanda. Os discos de vocês são editados pelo selo Cardinal Fuzz, que é sediado  no Reino Unido, certo? Essa situação também reflete o mercado de lá, com impactos na produção e na distribuição? Como você vê esse momento de “alta” do vinil?

Definitivamente é um momento divertido, LPs são fascinantes e há muita gente ao redor do mundo que realmente ama discos. A crise econômica no Brasil destruiu nosso poder de compra, LPs aqui são caríssimos. Mas não é assim em toda parte. Como tudo em nosso mundo, está condicionado às ondas do mercado, é um processo industrial voltado para este mercado. À margem deste mercado estão bandas como a nossa, com tiragens bem pequenas, que felizmente esgotam porque há  loucos ao redor do mundo interessados. DEAD ICONS teve uma tiragem de 600 discos, lançados pela CARDINAL FUZZ no Reino Unido — onde esgotou em 2 dias! — e pela LITTLE CLOUD RECORDS nos EUA.

Voltando às coletâneas, como foi o processo de reexaminar os arquivos e escolher as faixas? Rolou alguma surpresa ou redescoberta nesse processo?
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Foi sensacional. Cada música é como um registro de todas as tensões do momento — uma boa banda ao vivo está o tempo inteiro irradiando todo tipo de frequência — ou energia — porque você brigou com alguém, ou amou alguém, ou perdeu alguém, ou ouviu uma história absurda —  e dependendo da frequência do ouvinte naquele momento, aquela música pode mudar tudo. Uma sensação interessante é o estranhamento de ouvir algo que você fez anos atrás, mas agora desconectado de todas aquelas tensões, você apenas observa e escuta — e reconhece naqueles sons algo que você está sentindo agora, no presente. Foi assim que escolhemos.

Falando em discos, boa parte da discografia da banda não está no Spotify e em outras plataformas de streaming. Alguns discos até chegaram a entrar e depois saíram, e hoje o melhor lugar pra ouvir vocês é no Bandcamp. Como é a relação de vocês com as plataformas de streaming?

Ok, as grandes empresas que exploram comercialmente essa tecnologia estão roubando dos artistas. É um golpe bem parecido com o do Facebook, onde os usuários produzem o conteúdo. Eu não acredito que isso vá durar muito, porque os recursos técnicos para criar apps como esses estão cada vez mais acessíveis, é cada vez mais fácil fazer um novo app de streaming. E a tecnologia é sensacional: você pode ir para muitos lugares do mundo, viajar pelo tempo e pelo espaço e ouvir os testemunhos — discos — dos mais variados artistas e subculturas. É uma biblioteca maravilhosa. E nós amamos o Bandcamp — além de ser o melhor lugar para ouvir música contemporânea, aquela que está sendo feita nesse exato instante ao redor do mundo, o bandcamp  é também a melhor plataforma para bandas. Lembro de inúmeras vezes em que conseguimos jantar porque alguém comprou um download ou uma camiseta ali. Nós também vendemos pelo nosso próprio site, mas há uma comunidade ao redor do bandcamp. Gente que ama música.

Recentemente o Bandcamp foi adquirido pela Epic Games e apesar deles jurarem que não, rolou um temor que a plataforma fosse descaracterizada, o que de fato até agora não aconteceu. Mas isso me fez pensar em como o mercado independente é vulnerável a esses movimentos corporativos. Toda a comunidade criada no Bandcamp pode sumir com uma canetada de um executivo qualquer. Como se prevenir contra isso? É possível criar outras cadeias de distribuição e difusão fora do mundo das big techs, como um app de streaming desenvolvido pela própria comunidade underground, por exemplo?

A única forma de você não ser apagado por uma canetada dessas é diversificar — há muitas bolhas e plataformas diferentes disponíveis e é perigoso ficar apenas em uma. Se houver futuro — se o mundo não for destruído por uma guerra nuclear — em alguns anos Apps de streaming serão tão comuns quanto websites. De qualquer forma, o que eu realmente curto é o nosso próprio site — firefriend.com — estamos preparando alguns lançamentos exclusivos para o site. Este é o século 21, se você tem acesso a um computador e alguma imaginação, pode fazer muitas coisas interessantes. Todos esses desafios da indústria, a crise econômica, a falta de público, as bolhas, a energia dos shows, o lançamento de um novo LP… esse mundo barulhento, perigoso e insano onde estamos é um território em constante mutação. O que não muda é a vontade de tocar e rodar por aí. É divertido, mesmo com todas as dificuldades, porque o que é mais fundamental é lidar com as experiências, com a criatividade, com as pessoas novas que você encontra pelo caminho.  

*A discografia completa da Firefriend está disponível para download e audição no Bandcamp ou no site da banda. Sintonize.

Uma resposta para “Entrevista: Firefriend segue transmitindo por frequência alternativas”.

  1. […] recente entrevista, Yuri Hermuche comentou sobre essa voracidade musical da […]

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