Entrevista: George Belasco & O Cão Andaluz

George Belasco: o trabalho danifica, mas a música salva. (Foto: Leonardo Zingano)

O Trabalho Mortifica é o novo EP de George Belasco & O Cão Andaluz, banda de pos-punk e new wave de verve surrealista formada em meados dos anos 2000, em Fortaleza.

Com seis faixas, o disco dispara contra a alienação do trabalho, a angústia da vida nas grandes cidades, o tédio, e a mecanização da vida cotidiana. Temas “leves”, por certo, que ficam ainda mais contundentes nos arranjos, que acentuam o lado synth punk que sempre costurou as aparições da banda, ao vivo e em disco.

O Trabalho Mortifica é o segundo lançamento do Cão Andaluz após a retomada de atividades em 2019, que rendeu o álbum Os Cães Veem Coisas. Mantendo a formação em trio, com George Belasco (voz, guitarra, bateria eletrônica), Lucas Jereissati (baixo) e Felipe Couto (sintetizadores, bateria eletrônica), a banda entra em nova fase ainda mais mutante, sem baterista fixo e com possibilidade de se apresentar como trio, duo ou banda-de-um-cara-só, a depender das circunstâncias.

Pra saber mais sobre o disco, trocamos uma ideia com o vocalista George Belasco por Whatsapp (se pode show por zap, pode entrevista também) sobre a produção e as influências do EP, a dependência das redes sociais, o declínio do circuito independente de festivais e outras lombras.

Hugo Morais: George, pra começo de história eu tava esperando um álbum. Tinha mais música pra isso? Foi opção um EP?

George Belasco: A ideia inicial era lançarmos singles a cada 2 meses pra fechar o ano. Por isso, focamos em 6 músicas. Mas ao longo do processo de pré-produção a gente viu que havia uma ligação entre as faixas. Não só estética, mas também conceitual. Aí quando batemos o martelo pra lançar as 6 músicas vimos que as principais plataformas de streaming diferenciam EP de álbum pela quantidade de faixas e duração. Até 6 músicas ou menos de 30min é EP. Ainda pensamos em incluir alguma sobra, mas achamos que não teria a mesma vibe nem seria justo conosco. Cogitamos prensar vinil por conta própria e o EP ficaria mais em conta, mas deixamos de lado por enquanto essa ideia.

Capa do EP O Trabalho Mortifica, por Saulo Castor

Alexis Peixoto: Em relação ao conceito, como surgiu a intenção de abordar a questão da experiência atual do trabalho?

George Belasco: Eu começo qualquer trabalho com um título, um nome para nortear. Com O Trabalho Mortifica não foi diferente. A ideia inicial veio em 2021 quando retomamos a pré-produção. O título original era O Trabalho Danifica, uma frase que me acompanha há anos. É uma oposição à libertação ou à dignidade do trabalho que mastigou centenas de pessoas ao longo das décadas.

Iniciamos a pré-produção em setembro de 2019 e suspendemos os ensaios em dezembro para férias com a família, focar no trabalho, etc. Veio a Covid-19 em março de 2020 e até hoje temos dificuldade em retomar a normalidade de antes. O Lucas convive com a leucemia há 10 anos e isso restringiu radicalmente nossas interações ao vivo desde então. Qualquer sintoma e suspendemos gravação, ensaio… O que for.

O lance do trabalho mortificar fez um clique na cabeça quando me peguei trabalhando 16h em home office por sentir culpa de não resolver “mais uma coisinha” ou porque o VPN da empresa caiu durante 1h e “eu tenho de compensar porque fiquei ocioso”. Quando comentei com o pessoal da banda eles relataram passar pela mesma situação. Aí as pessoas começaram a naturalizar o termo “burnout”. Depois veio a resposta disso, o tal do “quiet quitting”. E nem são novidade… Quem no Nordeste nunca ouviu o termo “cozinhando galo”?

No final da pré-produção, em maio de 2022, fiz uma viagem com minha família para São Paulo. Tivemos de usar as passagens que não utilizamos em 2020 e que poderíamos perder. Calhou de chegarmos na semana mais fria dos últimos 30 anos. Péssimo timing. Enquanto atravessava o vale do Anhangabaú veio a letra de “Megacidades” e vi como as 6 músicas agora dialogavam entre si. Tem muito das experiências que vivenciei e vi amigos passarem.

Hugo Morais: Ia perguntar sobre o conceitual do disco. Mas você já respondeu que não foi intencional. Talvez a cabeça tenha levado a isso de forma inconsciente. Pra mim até a sonoridade, o ritmo aponta para o relacionamento ao trabalho e seus problemas. Tem isso?

George Belasco: O BPM das músicas e os timbres mais sintéticos dão essa cara, né? Nosso baterista Leo Mamede se mudou para trabalhar em Sydney no final de 2021 e aí tivemos de optar por chamar outra pessoa ou assumir essa faceta synth. “Um Fardo”, por exemplo, era surf music estilo “Sanguessuga”, mas aí entramos na onda de juntar coisas de trip hop com lo-fi beats.

Hugo Morais: Tem um quê de batidas de maquinário…

George Belasco: “Sangrem o carrasco” e “Comam Moscas” já haviam aparecido nas demos e tinham esse clima delícia de neurose. Aí, acentuamos.

Hugo Morais: (Risos) Vocês andaram se apresentando. Como está funcionando? Baterista mesmo ou em cima dos beats?

George Belasco: Desde 2019 não tocamos ao vivo. O lance da leucemia nos fez considerar bastante os convites. Aí, temos de formatar o show de 3 formas:

Trio: vocal+ 2 guitarras + baixo + beats/drum machine
Dupla: vocal + 1 guitarra + baixo + beats/drum machine
Solo: vocal + 1 guitarra + beats/drum machine

Hugo Morais: Marapaz… Eu jurava que tinha visto show de vocês no fim do ano. Noiei…

George Belasco: Kkkkkkkk

Hugo Morais: Ouvindo o disco, fiquei lembrando do disco solo de Catatau, que fala de uma Fortaleza futurista. No disco Fortaleza [do Cidadão Instigado], de uma destruição da cidade. O quanto disso, além do trabalho, tem no disco?

George Belasco: “Um Fardo” tem esse clima distópico misturado com uma bad vibe pós-relacionamento. Quando Felipe e eu reduzimos o BPM o synth lo-fi puxou muito a cara do disco solo do Catatau. Ouvimos muito desde o lançamento. Certeza que impacta. Contudo, é importante frisar que o som dele puxa muito do que tocava nas rádios de Fortaleza na década de 80-90. Eliane, Alípio Martins, Ovelha, Hermes de Aquino, Jessé, Sade, George Michael, A-ha. Então tem essa base comum. É futuro do passado que ronda a gente o tempo todo.

Alexis Peixoto: Eu estava vendo o clipe de “Megacidades”, que usa trechos do documentário “Praça da Sé”, de Nilce Tranjan. E a capa do disco também é uma colagem, do Saulo Castor. Achei curioso essa utilização da linguagem do cut-up, da recombinação de elementos na identidade visual do disco.

George Belasco: Saulo é um artista de mão cheia… De cola e remédios (risos). É psiquiatra e utiliza a música e as colagens pra extravasar. Acho muito foda o trabalho dele e curto muito trocar links de coisas nonsense que nos inspiram. A capa do EP faz parte da série Action, de 2021. Sempre falamos de trabalhar juntos e agora deu certo. Com ele elaborei as ideias pra identidade visual. Montamos um quadro de referências e conversamos longamente sobre possibilidades.

O clipe já é outro lance porque, eu estava de licença médica e fiquei 30 dias me recuperando. Nesse meio tempo me vi criando vídeos de divulgação para as redes sociais da banda no celular. Levantando referências de imagens cheguei no doc da Nilce e fiz uma homenagem reimaginando o roteiro a partir da letra de “Megacidades”. Ali, em 1976, você tinha uma metrópole que já mastigava pessoas há muito tempo. Que levanta e destrói memórias com muita gente na fundação. No clipe surge a dimensão do sonho ou da dissociação cognitiva. A proporção de tela muda do formato de 4:3 pra 16:9. O sonho não respeita limite.

Alexis Peixoto: O que também se conecta ao tema do EP, já que o sono e sonho também foram colonizados pelo mundo do trabalho, não?

George Belasco: Exatamente. Até o momento tudo é “sua melhor versão”.

Alexis Peixoto: Aproveitando pra já emendar outra pergunta nesse assunto de redes sociais… Como você vê essa situação de dependência das plataformas que a gente vive hoje? É possível imaginar outra cadeia de distribuição e divulgação fora desse esquema?

George Belasco: Há quem se dê bem com isso porque não aparenta se sentir violentado por produzir conteúdo gratuito para as big techs. Lembro que na década de 2000 havia muita banda de hardcore melódico composta por pessoas ligadas à publicidade. Então meio que servia de laboratório para aplicar no mundo real o que tinham aprendido na faculdade. Mas tem gente que não é desenvolta assim com esse meio digital. Isso faz deles artistas menores ou os desqualifica como artistas? Também não.

Nós, o Cão Andaluz, estamos no meio termo disso. O Felipe tem estúdio e trabalha profissionalmente mixando e fazendo trilha sonora. Nosso ex-baterista presencial, Mamede, sempre esteve ligado ao meio audiovisual. O Lucas já foi assessor de imprensa durante anos. Eu trabalhei fazendo um pouco de tudo conforme a necessidade (spot de rádio, web design, gráfico, social midia, produção musical). Nem por isso somos produtores de conteúdo. Nossas redes sociais têm lapsos temporais que a velocidade de consumo não aceita.

O tempo que estou produzindo um teaser ou um post é no intervalo do trabalho ou enquanto cuido dos meus filhos. Dei uma volta grande, mas esse arco é pra mostrar que nós não dependemos de plataformas para existir como artistas. A cadeia de distribuição também não. Contudo, isso vem com uma navalha embutida. Se eu não sou comentado dificilmente serei lembrado. Num mundo de métricas, cartesiano, não ter números expressivos me torna menos relevante para quem está amarrado nesse instrumento de tortura digital.

A plataforma vai mudar. O Myspace rodou e hoje o modelo é outro, mas sempre haverá alguém com o domínio de um canal e com recurso suficiente para dizer que sem ele não podemos sobreviver dignamente. Balela. Nem tudo que é sólido desmancha no ar.

Hugo Morais: Tem uma coisa nisso que é preocupante. Tem festival chamando artista/banda por engajamento em rede social. Antigamente se via os shows, recebia material. Reduzir algumas contratações a números de curtida e compartilhamento ou viralização é o cúmulo.

George Belasco: Para mim isso é o reflexo de como os empreendedores estão preocupados em métricas. Gerir um negócio, o tal do business, não é e nunca foi arte. É a mesma lógica de novela. Fernanda Montenegro é menos atriz porque não tem 1M [de seguidores] no app das fotos ou naquele dos vídeos curtos (que agora são todos iguais)?

Alexis Peixoto: Esses festivais que Hugo comentou são os que “não têm compromisso com a cena”, como Paulo André do Abril pro Rock definiu em uma entrevista que fizemos com ele. Ou seja, a preocupação é só com o boca-a-boca nas redes sociais e com o lucro, sem nenhum investimento na cadeia produtiva em longo prazo.

George Belasco: Exatamentte. Não há fomento envolvido nisso. A base desse consumo cultural é diversa: passa tanto pela pessoa que sai de casa para ouvir som com sua galera na calçada como por quem está enfurnado no quarto jogando online.

Hugo Morais: E o que mais tá rolando é isso. Festival de banco. Que merda, bicho.

George Belasco: Antes era de portal de internet e antes disso, [marca] de cigarro. Sempre é quem tem a chave do cofre. Gostaria de sair de casa para ver Kraftwerk e Weyes Blood e Dry Cleaning? Certeza. Irei? Improvável.O pessoal que está trazendo esses artistas é o mesmo do Free Jazz e com grana de banco. Pra mim, o lance é mais a curadoria do que quem “banca” tudo isso.

Agora, vamos combinar que para nós australopitecus médios está impraticável o preço disso. Se você olhar o lineup desse festival que trará o Kraftwerk é: artistas brasileiros foda no início da noite em formato de tributo/coletivo, e depois os internacionais.

Alexis Peixoto: A impressão que eu tenho é que perdemos algum terreno intermediário entre o festival pequeno e o mega-evento patrocinado pelas grandes corporações. Nos anos 2000 a gente tinha um circuito interessante de festivais de médio porte, havia uma plataforma como a Trama Virtual que conseguia reunir bandas, produtores e jornalistas na mesma rede de contatos. Hoje ou é no esquema gambiarra ou são esses mega com cobertura no Multishow, que só dão espaço pro topo da cadeia. Ou pra esses shows-tributos, como tu bem lembrou.

George Belasco: Karina Buhr foi certeira em afirmar pra Roberta Martinelli que a sensação de fracasso é grande. Recuamos décadas pelo caos político de 2016 pra cá. Isso se agravou com a Covid-19 e mostrou como a fundação do prédio Circuito Independente Residence estava mais para palitos de picolé amarrado com barbante.

Quem ia dizer que lá em 2003-2004, quando debatíamos via e-mail sobre o fortalecimento do circuito independente no Nordeste (na lista Nordeste Independente) veríamos o mesmo preço de ingresso 20 anos depois? Não sei em outros Estados, mas a condição das apresentações no Ceará é praticamente a mesma.

Hugo Morais: Aqui também. E casas fechando, outras surgindo. Galera criando local… E o lance dos festivais que podemos considerar médios também já vem sendo bancadas por [marcas como] Devassa e Natura. Pra findar, tem previsão de botar esse trabalho nos palcos?

George Belasco: Não temos previsão de show. Porém, não estamos mais dependentes de baterista, agora podemos tocar em espaços com restrição de volume e em formatos mais dinâmicos. Isso pode ajudar a botar O Trabalho Mortifica para jogo. Confesso que estou na pira de entrar em estúdio para gravar coisas novas e revisitar o baú da memória.

Na sequência, ouça O Trabalho Mortifica no YouTube. O disco também está disponível nas principais plataformas de streaming.