A cena metal, em geral, carrega a fama de ser tradicionalista na maioria dos seus sub-gêneros. O black metal sempre foi uma das vertentes com fãs mais “ortodoxos”. No entanto, nas últimas duas décadas, começou a apresentar bandas que flertam com outros estilos, como o shoegaze, dream pop, fol, entre outros, o que atraiu outros públicos, e até não adeptos dos sons extremos.
O vocalista e guitarrista Rafael Assunção criou no final de 2020 um projeto de one-man-band chamado Desista, do qual já falamos aqui na Revista O Inimigo. Em outubro de 2022, ele lançou seu segundo trabalho, o EP Configurações do Lamento, que possui 4 músicas em um total de 29 minutos de duração.
A novidade é que nesse segundo trabalho ocorre uma mistura do black metal com a música eletrônica, diferenciando este do primeiro disco, em que o flerte musical era com o post-rock. Conversamos um pouco sobre a forma de composição, influências e possíveis novos caminhos musicais.
Revista O Inimigo: Desista é um projeto de abordagem mais pessoal seu, as letras do novo trabalho tratam de que temas?
Rafael Assunção – Esse novo material, assim como o EP do ano passado, é o resultado das minhas vivências e dos meus pensamentos. Uma espécie de diário sobre o meu interno. É a continuação e as consequências descritas no material passado. O primeiro material seria uma espécie de reconhecimento de si e aceitação sobre aquilo que caracteriza cada indivíduo. Um momento de reflexão sobre o que nos rodeia física e mentalmente. O segundo material é a necessidade de reagir a tudo isso.
Quando você compõe as letras, elas abordam temas e sentimentos reais seus ou trata-se mais de uma persona?
Totalmente reais. Eu não conseguiria falar sobre temas tão pessoais, se eles não estiverem ligados a minha vivência.
As músicas do EP estão com um tempo mais longo que as do disco de estreia, fale um pouco sobre isso.
A estrutura do novo material foi construída naturalmente. Durante o processo de gravação, ideias foram surgindo e o resultado disso foram músicas maiores que o EP anterior. Não me preocupo no momento que estou compondo com a duração das músicas, enquanto estiver fazendo sentido pra mim continuo trabalhando na música. Curto muito a ideia de compor o instrumental de forma linear, sem repetir os arranjos, em vários momentos da música, ou de construir refrão. Gosto de passar a sensação de que cada momento da música fala sobre algo. Sem olhar para trás, o instrumental continua andando para frente até chegar ao fim, as letras são o complemento.
A sonoridade apresentada nas canções está um pouco diferente, você mesmo admite estar mais eletrônica. Isso é resultado de novas influências musicais ou algum outro motivo?
Acredito que o fato de não ouvir só rock e metal faz com que a gente não se prenda apenas no que eles têm a nos oferecer. Não é exclusividade minha, várias bandas no cenário nacional e mundial já entenderam que a música não tem limites e que conseguimos mesclar vários gêneros com a música extrema. Gosto bastante de música experimental, eletrônica e improvisada. Acredito que o Black Metal Hyperborea teve sua contribuição e sua influência continua até hoje, mas assim como qualquer outra coisa, será superada com o tempo, isso é inevitável. A contracultura não é conservadora, a todo momento está em movimento. Vão surgindo novas questões em nossa realidade que não estavam presentes há 30 ou 40 anos atrás e essas mudanças refletem na música.
Apesar de você falar em contracultura não ser conservadora, no cenário metal, mais especificamente no Black Metal, existe uma parcela de público que segue uma linha mais purista e até conservadora. Como vem sendo o retorno das pessoas que já escutaram o disco? Chegou a ter retorno, de alguma forma, dessa parte mais “ortodoxa” da cena local?
O conservadorismo no Black Metal é um fato inegável. Existem bandas e existe um público específico que se manifesta, tal como as hierarquias eclesiásticas. Renegam o passado e as influências que fizeram o Black Metal ser o que é até hoje. O black metal não se resume ao ”Black Metal Inner Circle” da Noruega – essa afirmação não nega a importância do movimento para o gênero – ao qual sua estética ainda é associada. Aos que acreditam que o Black Metal se resume a Noruega, provavelmente, não se preocupam em entender como o gênero se manifesta nos dias atuais.
Por esse motivo, acredito que esse público mais conservador não tem interesse no Desista. Sempre me posicionei como uma banda de RABM, deixando claro que o projeto não é favorável a ideologias de direita e extrema-direita. O black metal influenciado pelo punk, pela contracultura, pelos ideais libertários sempre foram o foco do projeto e isso já limita muito o seu alcance dentro do nicho.
Aproveitando também o gancho das últimas perguntas, você também já demonstra gostar de inovar e jogar influências mais diversa. Quais as influências deste trabalho? É possível que em outros a coisa tenha ainda mais mistura, de outras influências fora do metal e até do rock como um todo?
As influências são diversas, basicamente uma síntese das coisas que estava ouvindo – e lendo – na época da produção do disco. Vão de gêneros como Kayōkyoku (Showa Jpop), Shoegaze, D&B, música experimental etc. Existe uma infinidade de influências diretas e indiretas que foram responsáveis pela formação do disco.
Acredito que os próximos materiais vão continuar na proposta experimental, tendo como referência central o Black Metal. Cada disco é uma oportunidade de conhecer meus próprios limites enquanto compositor. É uma oportunidade também de afirmar que todos os gêneros se somam e de que não existe limites.
Como está a questão de apresentações ao vivo para o novo disco?
A resposta para essa pergunta é um pouco complicada (risos). Não sei ao certo se um dia o Desista irá se apresentar ao vivo, confesso que desde o início da banda essa nunca foi a pretensão. Apesar que já houveram ensaios e só pararam de ter porque o baterista fraturou o pé andando de skate. Mas hoje tudo é tão corrido, incluindo o fato de que os músicos da cidade já possuem vários outros projetos e tem as correrias de suas vidas pessoais, fica difícil dar uma resposta certa. Mas acredito que uma apresentação um dia acontecerá (risos). Até porque as pessoas que ensaiaram comigo sempre estão próximas.