Ratos de Porão lançam chamado à crítica radical em Necropolítica

Ratos de Porão em 2022: Juninho (baixo), Gordo (voz), Boka (bateria) e Jão (guitarra). Foto: Marcos Hermes

Artistas não são videntes capazes de prever o futuro. Quando o Ratos de Porão lançou o clássico Brasil, ainda sob os ventos frágeis da redemocratização, ninguém, nem mesmo o próprio João Gordo, autor de todas as letras, esperava que músicas como “Amazônia Nunca Mais” ou “Farsa Nacionalista” continuassem soando tão atuais mais de trinta anos depois. De novo, não é um caso de clarividência. Gordo e os Ratos não “previram” o Brasil de 2022, tanto quanto reagiram ao que viam pela janela de casa, já naquela época. Se o tempo passou e tudo continua igual, não foi por falta de aviso.

Capa de Necropolítica, disco novo do Ratos de Porão.

Necropolítica, novo disco do RDP e primeiro de inéditas em 8 anos, é outro grito de alerta que exige ser ouvido agora. Apresentando pela banda como um “álbum conceitual sobre o bolsonarismo”, passa a limpo em dez faixas alguns dos sintomas mais latentes da crise política, social e humanitária que o Brasil atravessa – o negacionismo diante da pandemia, a ascensão do neofacismo, as fake news e a guerra de desinformação, o silêncio conivente da burguesia, a ofensiva reacionária da bancada evangélica… a lista poderia continuar.

Musicalmente, Necropolítica também se conecta aos trabalhos anteriores da banda. Além do já citado Brasil, fãs com conhecimento de causa vão lembrar dos clássicos Cada Dia Mais Sujo e Agressivo (1988) e Anarkophobia (1991), álbuns que sedimentaram o choque do hardcore com thrash metal que é modus operandi do Ratos até hoje. Além do pedigree peçonhento, o disco novo também tem algo em comum com a trinca de clássicos – a estabilidade. Necropolítica é o 14º álbum de estúdio dos Ratos e o terceiro com a mesma formação, que já é a mais duradora da história da banda, com Gordo, Jão (guitarras), Juninho (baixo) e Boka (bateria). O entrosamento entre os quatro é evidente, com destaque para Jão, inspiradíssimo e cuspindo alguns dos melhores riffs e solos já registrados na discografia da banda.

Aliás, em vez de remeter à fase dos anos 80 (e à igualmente clássica formação com o baixista Jabá e o baterista Spaghetti) talvez faça mais sentido pensar em Necropolítica como o terceiro capítulo de uma segunda trilogia, mais recente, que incluiria também os ótimos Homem Inimigo do Homem (2006) e Século Sinistro (2014). Embora não sejam tão “jornalísticos” e imediatos quanto o novo, as denúncias sobre o retrocesso social e a nuvem reacionária que lentamente avançava sobre o país já estavam naqueles discos – é só ouvir “Pedofilia Santa” e “Puta, Viagra e Corrupção”, por exemplo.

Considerando a toada em que vamos, é seguro arriscar que daqui a alguns anos alguém pode pegar Necropolítica para ouvir e comentar o quanto faixas como “Alerta Antifacista”, “Neonazi Gratiluz”, “Guilhotinado em Cristo” e “Passa Pano Pra Elite” continuam atuais (os títulos são autoexplicativos, creio eu). Necropolítica merece estar entre os melhores trabalhos da banda, mas precisa ser ouvido e compreendido agora. Este não é simplesmente um disco “de protesto”, mas sim um chamado à crítica radical e cotidiana, hoje. Daqui a trinta anos talvez não nos reste muito o que lamentar.

*Necropolítica já está disponível nas principais plataformas digitais. O disco será lançado no Brasil em CD pelo selo Shinigami  e em vinil pela Fuzz On Discos.