Algumas bandas entram para o imaginário popular com muito pouco. Um disco, uma música. Acabam e um dia viram cult. Para ganhar esse status espera-se pelo menos ousadia, inovação, algo diferente. A cada dia que passa isso fica mais difícil, quase tudo soa como cópia. Em Recife, no auge do Mangue Beat, aconteceu a invasão dos monstros notívagos no maravilhoso mundo musical dos caranguejos com cérebro. Uma invasão que prometia radicalizar a cena.
Textículos de Mary e Banda d’As Cachorra
A invasão foi traduzida por muita gente como uma banda. Mas essa era apenas uma das facetas pensadas para compor a história do travesti que se mutilou e deu origem a Textículos de Mary com seus personagens representando o submundo de perversões sexuais, violência e opressão. Para caracterizar a imagem do produto gerado pelo travesti, nada melhor do que três vocalistas homossexuais a frente da banda. A idéia inicial não parava na ação sonora, era para ser multimídia. Com música, vídeos e até história em quadrinhos, que se perdeu e nunca foi lançada. Havia pessoas de outras áreas envolvidas, como artistas plásticos e cineastas. Se apenas como banda eles tocaram o terror por onde passaram, não dá para imaginar o que aconteceria se todas as idéias tivessem sido postas em prática.
O braço armado da Textículos é a Banda d’As Cachorra. Inicialmente formada por três seres indecisos sexualmente que tocavam forró e pagode na noite recifense. A transformação ocorreu devido a contaminação pelo material genético mutante intravenosamente. Mas a mutação não trouxe só benefícios, ela se mostrou de vida curta, o que pode explicar as várias formações que a banda teve.
Toda a história foi idealizada por Fábio Mafra, ex-vocalista mais conhecido como Chupeta. A idéia era conceitual e com vida útil definida. Começou em 1997 quando o percussionista Linaldo Batista (Loira Negra) começou a namorar a mãe de Fábio (Chupeta). Os dois começaram a compor e outros músicos foram entrando. O contrato assinado com a Deckdisc previa três discos com temáticas específicas. Após o terceiro álbum o fim seria decretado. O primeiro disco, Cheque Girls, seria o mais leve. No segundo, Bissexuástica, mais pesado, o sucesso subiria a cabeça dos personagens. Chegou a ser mostrado a Deckdisc através de uma Demo gravada em Recife, mas o contrato foi rescindido e apenas o primeiro foi lançado. O último álbum seria deprimente, suicida.
Shows para vários públicos, movimento só pélvico
A primeira formação contava com Chupeta (Fábio Mafra), Linaldo Batista (Loira Negra), Lollypop (Henrique Durand, vocal), Silene Lapadinha (Tony, vocal), Bambi (Adriano Salhab, guitarra) e Friuílli (Karin Schmalz, teclados). Durou até 1999. Daí até a última apresentação a Banda d’As Cachorra teve cinco formações, variando entre três e seis integrantes. O primeiro show foi em 1998 no 4º Festival de Música Venusiana do Bem, realizado pelo grupo de artistas Molusco Lama, na extinta Soparia, de Roger de Renor, no Pina. Fizeram apresentações em locais distintos como praças, boates, teatros, bares e festivais. Entre eles o PE no Rock, Festival de Inverno de Garanhuns, Rec Beat e AbrilProRock.
Muitos foram os shows históricos marcados pelas maquiagens pesadas e simulações de sexo no palco, o que provocava repúdio de parte do público que não sabia do que se tratava a banda. O auge foi a apresentação no AbrilProRock de 2002 em Recife e São Paulo, que levou a banda a MTV e vários programas como Gordo a Go Go, Super Pop, Musikaos, Clodovil Abre o Jogo e outros. Surgiu também o convite de Rafael Ramos para lançar o disco pela Deckdisc. Segundo Fábio Mafra, no AbrilProRock eles eram mais contidos. Mas em outros palcos, em shows abertos com público maior e com ajuda do teor alcoólico mais elevado, as estripulias eram maiores: “Teve um show no Pátio de São Pedro que jogaram um pirulito no palco, eu enfiei no cu e devolvi. E o melhor, o cara saiu chupando o pirulito. A gente sempre era um pouquinho mais comportado no AbrilProRock”. A banda também participou de alguns eventos políticos e em prol de movimentos sociais, mas Fábio esclarece que nunca assumiram postura alguma: “Nunca fomos uma banda engajada. Como eu dizia, movimento só pélvico”.
Quem é o doido que vai segurar essas tresloucadas?

O sucesso regado a rock, letras e shows explícitos, fez a banda crescer rapidamente, mas as estripulias nem sempre provocavam reações boas. Em uma apresentação numa boate gay a banda foi hostilizada: “O lance da boate gay foi uma coisa bem específica. Um vampiro não gosta de se olhar no espelho. Tinha pouca gente na boate no dia, estava em greve de polícia, a cidade estava em pânico. Na boate só estavam umas poucas mariconas, com seu respectivos michês. As tias estavam detestando, mas os garçons e os boys estavam até se animando. Mas quem paga é quem manda. Depois da terceira música o som foi cortado”.
Segurar as tresloucadas no palco era difícil, mas fora dele os integrantes conseguiram se organizar e manter uma dedicação quase exclusiva a banda. E se mantiveram unidos durante bons sete anos. A Deckdisc lançou Cheque Girls, mas o rumo que poderia ter dado a banda não aconteceu. Isso associado a não existência do mundo virtual como conhecemos hoje, do preconceito dos produtores culturais e do custo em manter a banda, implodiu a idéia: “Na época não tínhamos acesso a internet como agora. Ninguém tinha grana pra comprar um computador. Depois da gravação do CD tivemos algum apoio da gravadora, mas faltou pulso! A Deckdisc não sabia muito o que fazer com a gente, os festivais ajudavam muito. Na verdade foram eles que seguraram a banda por um tempo, mas não dava pra sobreviver só de festivais, eram poucos ao ano e a banda era cara de sustentar. Porque além de ensaios, instrumentos e etc, ainda havia as roupas, maquiagens, cenários… Na verdade todos adoravam a Textículos, mas ninguém tinha coragem de empresariar. Isso foi desgastando a gente”.
Registros musicais
Se a idéia toda não vingou, pelo menos ficaram os discos. Um lançado pela gravadora Deckdisc, Cheque Girls (2002) e outros Demos: Xivúla (1999), Tivira (2000) e Bissexuástica, que daria origem ao segundo álbum. Após a rescisão da Deck a banda recebeu a proposta de gravar o disco por outro selo, mas condicionado a inserir o nome do mesmo na banda. A proposta foi recusada. Mas a Demo que apontava para um rock mais pesado, mais sujo, caiu na rede pelas mãos de Fábio, que defende a liberação da divulgação através de outras formas: “O Bissexuástica pode aparecer na rede. Mas nada do Cheque Girls pode aparecer, a não ser no site na gravadora. Que é pago. Sou a favor da quebra desse sistema de divulgação de arte”.
Cheque Girls é um disco que possui letras explícitas sobre sexo e o universo gay, tem até uma versão debochada para a música do desenho She-Ra. Já as músicas oscilam entre rocks raivosos, baladas e até um reggae que fala sobre uma curra gang bang. Mas muitas vezes elas são puxadas para um pop, resultado da imaturidade da banda e da tentativa de tornar o som mais palatável. “Teve muita influência de Rafael Ramos. Mas acho que o resultado tem mais a ver com a imaturidade da gente na época. Eu estava mais preocupado em não mudar as letras, que eles queriam também. Acho que algumas músicas funcionaram bem, como “Uma Linda em Berlim”. Mas outras não, como “Charles Bronson’s Song”. Eu foquei mais nisso, nas letras. Aí tive que abrir mão na hora da produção musical. Hoje em dia eu teria mais condições de influir na hora da mixagem e arranjos, era inexperiência mesmo”, esclarece Fábio.
Do Seis e Meia a arqueologia
O último show da banda foi em 29 de julho de 2004, no Projeto Seis e Meia abrindo para Eduardo Dusek. E quem conhece o projeto deve saber qual público ele contempla. Mas além da platéia comum a esse tipo de espetáculo, havia uma pequena parcela entusiamada que foi lá prestigiar e reverenciar a banda. As palavras de Fábio simplificam como aquela noite terminou: “Foi pra fechar com chave de ouro. Teve até polícia. Mas no final saiu tudo bem. Foi um show memorável. Alegaram que a gente havia passado do horário. Mas o show havia sido cronometrado. Se passou muito, foram uns 10 minutos. Por isso a polícia. Mas a culpa foi da produção. Juntar um show em que um público era bem família e a gente, deu no que deu”.
Depois que a banda acabou cada um voltou para suas atividades “normais”: garçons, músicos, produtores culturais. Fábio, formado em História e com mestrado em Arqueologia, faz atualmente doutorado na mesma área. Não pensa em voltar a música e nos dias de hoje se limita a ser público. E como tal tem uma visão da produção recifense: “Morta. Acho a cena atual meio pasteurizada. Muita informação, todo dia aparece uma banda nova. Acho que as bandas novas estão precisando ficar velhas. Ultimamente só tenho ouvido coisas antigas: Beat Happening, muito ainda do que nos influenciou como Bowie, Lou Reed, T Rex, Bauhaus, Pixies… Quando acabou a banda fiquei um período sem querer ouvir nada. Mas ainda bem que passou. De música brasileira ouço pouca coisa, o de sempre: Fellini e Mutantes”.
Reconhecimento póstumo
Se a banda acabou, a história ainda está viva através do disco virtual Bissexuástica, do Cheque Girls disponível no Som Barato, do MySpace, criado por um fã da banda, da comunidade do orkut e de vídeos espalhados pela internet. Destaque para o episódio do documentário De Andada, sobre lugares que marcaram alguns músicos em Recife e serviram de inspiração para músicas, onde Fábio Mafra (Chupeta) fala sobre a Praça da Várzea e outros points gays presentes na música “Serviço de Utilidade Pública”.
Abaixo o vídeo-clipe da música “Propóstata”.
* Texto publicado originalmente em 31/03/2009 no antigo e falecido site original d’ O Inimigo