Entrevistão: Manger Cadavre?

São 10 anos de atividades. Singles, splits, Eps, álbuns. A Manger Cadavre? segue produzindo, se reinventando, atuando no que se chama de DIY na linha de frente: além das palavras e das redes, a música faz parte do dia a dia, com posicionamento político e até em luta sindical. Decomposição, álbum lançado em 29 de outubro, traz em sua cerne o pessoal e o coletivo. Seja em experiências de Nata Nachthexen (vocal), compositora da banda em sua maioria, ou em um olhar para o dia a dia da sociedade, o coletivo, passando pela política e o combate a tudo que envolve a regressão de direitos e o tratamento com quem quer um mundo mais igualitário. A banda estreou com os singles “Sua Justiça” e “Existimos!” em 2012. A seguir lançaram o EP Origem da Queda e seguiram produzindo o que levou a shows pelo Brasil todo, como aqui em Natal no El Rock, casa que não existe mais, assim como várias casas que fecharam durante a pandemia. O som da banda é versátil ao ponto de ser possível ouvirmos lado a lado influências como hardcore e o death metal, seja com velocidade ou com pegadas mais cadenciadas.

Batemos um papo com Nata sobre a banda e sua história, discos, influências e a luta diária.

O Inimigo: Vou começar do começo porque nunca batemos um papo. Então fale como a banda surgiu. Os integrantes e influências que levaram à formação.

Nata Nachthexen – A banda foi fundada pelo nosso batera, o Marcelo Kruszynski, em 2011, hoje faz 10 anos exatamente do nosso primeiro ensaio. As influências eram as mais variadas entre hardcore e metal. As principais eram Today is the day e Catharsis de hardcore e de metal Obituary. Começou como um sexteto, sendo 2 vocais e 2 guitas, aí muita gente, conflito de agendas, acabou ficando como quarteto.

Já são 10 anos entre singles, eps, splits e álbuns. Como vocês veem essa história? Melhorou, piorou, tá a mesma coisa? Digo em termos de produção, shows, tour…

Depende do ponto de vista! Tem lugar que tá melhor, tem lugar que tá pior, teve pico que fechou, galera que parou de organizar shows, na contrapartida tem novos locais, molecada sub-20 renovando a cena… Pra gente melhorou em tudo. Composições, qualidade de gravação, shows com estruturas melhores, conhecemos o Brasil de norte a sul tocando em tudo que é rolê e festival. Pra ano que vem já temos tour na América Latina agendada. O trabalho dos selos dentro e fora do Brasil tem sido muito bom pra gente, pois além de garantir a distribuição, levaram nosso som pra uma galera que a gente dificilmente teria acesso e isso fez o nosso público crescer muito. Então pra gente tá massa, mas você vai encontrar pessoas dizendo que está pior. Acho que dentro das perspectivas de ser uma banda localizada num país de desenvolvimento tardio e tratado como um fazendão pelos imperialistas, neoliberais, a nossa cena tira leite de pedra e, exceto no quesito equipamento, não devemos nada pras gringas.

Desde o começo vocês têm como temas além do ser humano como um todo, os problemas sociais, políticos e até ecológicos. São 10 anos de umas transformação profunda no Brasil. Pra pior. O álbum recém lançado tem muito disso. Cabe otimismo?

Sim, na organização da classe trabalhadora e na luta, sempre. É a esperança de todos os dias. Sem isso a gente se mata. Tem que ter esperança!

O single “Apatia” que vocês lançaram levou gente a crer numa mudança de som. Algo mais arrastado. Mas o disco não tem essa constância. Tem tanto música mais arrastada quando com mais velocidade. Como foi a criação desse disco?

Só caiu nesse golpe quem não conhece muito da discografia Manger! (risos) A gente tem várias músicas na pegada do sludge/doom dentre os nossos lançamentos. Apesar da maioria dos sons serem mais paulada, a gente é grande fã do rock triste! (risos) O álbum não foi temático, então como estávamos na pandemia, fomos passando as referências dos sons que a gente curtia pros meninos que entraram na banda (houve mudança de formação de cordas), e como não tinha show, fomos compondo devagar. Aí dentro dos nossos gostos e da identidade da banda, conseguimos trazer mais bases pesadas do death metal pro hardcore crust que a gente faz.

Fala dessas mudanças. Como foi o processo e as novidades que isso trouxe ao sonoridade da banda.

Com a saída do Marcelinho e do Jonas, por problemas pra conciliar trabalho e estudos com a rotina da banda, a gente fez os shows do primeiro trimestre com substitutos. A ideia era fazer os shows do semestre com eles até achar membros fixos. Nosso último show foi em 15 de março, no Overload, depois disso começou a quarentena e nós paramos até o final de setembro quando testamos os novos membros e rolou legal. O Bruno Henrique tem pouco tempo como baixista, mas é muito dedicado e responsável e isso foi o que definiu a gente optar por ele na banda. Já o Paulinho a gente conhece há 10 anos e sempre tocou muito bem. Ele tocava em uma banda de crossover, mas também gosta muito de death metal, hardcore mais pesado, sludge… Então foi uma grande soma pra banda. Ele e o Marcelão (batera) se deram muito bem em relação a gostos musicais e compor tem sido muito legal pra banda (sim, mal lançamos o álbum e já estamos compondo outro – risos).

Capa de Decomposição, álbum da Manger Cadavre?

Hoje tava ouvindo o podcast de Thiago França (sax do metá metá) com Marcelo Cabral e ele falando que a galera vê a fama, mas não sabe os pormenores das dificuldades do independente. Vocês conseguem renda com a banda? Ter atividades paralelas creio que todos têm.

Não temos renda, mas também não temos mais gastos. Em outros momentos a gente fez empréstimo em banco pra conseguir gravar, era um perrengue só. Mas conforme fomos tendo um público que abraça a banda mesmo, passamos a pagar todas as despesas como ensaios, gravação, produção, alimentação em tours, com o dinheiro da venda de merchandising. Nós não temos um cachê efetivamente e sim ajuda de custo, mas sempre pedimos aos produtores pelo menos o custeio do transporte. Com a pandemia, a venda de merch diminuiu, pois o principal momento de compra é nos shows e como não tocamos, ficamos restritos a venda online. Para a gravação do Decomposição, fizemos uma vakinha online por meio de pix. Foi sugestão de um fã da banda que entrou em contato dizendo que queria contribuir financeiramente com a nossa gravação e deu a ideia de abrirmos pra quem quisesse ajudar. Não achávamos que conseguiríamos, mas arrecadamos R$ 7000 com doações de valores a partir de R$1 (e sim, muita gente ajudou com R$1 e foi do caralho, pois não pesou pra ninguém e na quantidade, nos ajudou demais). Da formação atual, o Paulinho trabalha em fábrica, o Bruno está desempregado, eu trabalho com comunicação digital de forma remota e o Marcelo é barbeiro e tem o selo Helena Discos.

Você disse anteriormente que o álbum não foi temático. Ele passeia muito por problemas/vivências individuais e coletivas. Como foi o processo de composição da banda? Foi todo durante a pandemia? Como vieram os temas e a criação das músicas?

Metade dele é mais abstrato, fala muito sobre a morte, família, relações (amizade, trabalho, ataques) e o fim delas e questões que eu passei individualmente. Mas eu escrevi muito por metáforas, então não acho que nem vem ao caso explicar as letras, pois elas são tão pessoais, que só eu sei o significado de cada palavra. Mas a beleza do abstrato é cada um poder se identificar como quer e criar suas próprias conexões. A segunda metade é mais politizada… Nossas letras sempre partiram do recorte de classe. Do álbum todo, só a “Cemitério do Mundo” foi escrita pelo nosso batera, o Marcelo, as demais são minhas. Essa segunda parte por sua vez já é uma crítica anticapitalista com apontamentos mais precisos para práticas de neoliberalismo, o imperialismo que nos mantém como um grande fazendão, o modo colônia só tem acesso a internet agora… E tem a “Demônios do Terceiro Mundo” que é uma alegoria para uma insurreição do povo contra os deuses da atualidade: bancos e grandes conglomerados, que tem como braço as Igrejas.

Nesse ponto de vista da politização muitas bandas “caíram em desgraça” porque os membros não conseguiram mais disfarçar seus pensamentos e atitudes. Isso foi bom para o meio já que o rock tem muito progressista disfarçado?

O rock é um ambiente de revolta e revolta não significa efetivamente politização… Eu costumo brincar que se fosse pensar efetivamente nesse aspecto, nem desse gênero a gente deveria gostar. (risos) A questão progressista é bem relativa, uma vez que o que a gente mais viu nos últimos anos foi a direita utilizando dessas pautas para massacrar a população periférica, mas com “miragens de representatividade”, bem como a gente menciona em “Miseráveis”. Então, questões progressistas quando isoladas da luta de emancipação do povo trabalhador, acaba sendo o famoso “pink, black money” com uma minoria ínfima tendo algum privilégio, enquanto a maioria continua sendo efetivamente esmagada. Dos subgêneros, acredito que apenas o punk teve essa veia mais de contestação, na figura do anarcopunk. Hoje tem até a onda do “anarcocapitalismo” entre punks, por mais incoerente que soe. No metal, acredito que o thrash e o grindcore sejam os meios que tenham mais politização, com bandas com questões mais concretas que outras, mas não é uma regra e nem acho que deva ser. Nós do Manger temos membros comunistas leninistas e também anarquistas no aspecto mais sindical. Então pra gente faz sentido ter essa veia pautando sempre a questão dos trabalhadores, do terceiro mundo com sua força de trabalho e riquezas exploradas.

Ontem estava ouvindo o disco (ouvi duas vezes – os vizinhos devem ter adorado – risos) e gostei muito da sonoridade. Mas o que mais chama a atenção é o vocal. Faz algo especial pra manter o gogó tinindo? (risos)

(risos) Eu faço aula de canto! Apesar dos 10 anos, só faz 3 que eu tive condições financeiras de pagar aula e isso melhorou demais minha potência. Esse foi o primeiro trabalho nosso que eu fiquei 100% satisfeita com o vocal.

Pra terminar: esse novo trabalho que está sendo criado (ainda no calor do lançamento do Decomposição) tem prazo e formato? E os planos – além da tour na América Latina – como estão?

A gente já tem três sons prontos e um quarto em andamento… como a gente finalizou as gravações do Decomposição em maio, já enjoamos de tocar ele em ensaio. (risos) Nisso, como desde então não havia previsão de volta de shows, resolvemos aproveitar pra continuar criando, pois a previsão é que ano que vem a gente toque bastante. Então, estamos fazendo sem pressa, provavelmente um novo álbum só saia em 2023, mas já que estamos parados ainda, estamos aproveitando que a criatividade está em alta. Pra julho, tour Norte e Nordeste, dezembro Argentina, Chile e Uruguai, ambas de 15 dias e de resto shows e mini-tours em feriados prolongados.

Ouça Decomposição, via Bandcamp.