Faixa a Faixa: Valciãn Calixto comenta o EP Macumbeiro 2.0

Valciãn Calixto em estúdio. (Foto por Yago Araújo)

Valciãn Calixto é cantor, compositor e instrumentista de Teresina, Piauí. Em atividade desde meados da década passada, já lançou dois álbuns de firma própria – Foda! (2016) e Nada Tem Sido Fácil Tampouco Impossível (2020), além de outros EPs e singles, sozinho ou como integrante de outros proejtos. Apesar de serem trabalhos formalmente distintos, cada disco novo de Valciãn se conecta aos anteriores pela pesquisa incansável sobre os pontos de contato entre tradição, modernidade e identidade cultural, a partir da costura entre estilos distintos como axé, samba-reggae, spoken word e punk rock.

Para marcar o lançamento do EP Macumbeiro 2.0, que chega a todas as plataformas de streaming nesta segunda-feira (16 de agosto), convidamos o artista para detalhar as influências, circunstâncias e curiosidades por trás de cada faixa do novo trabalho.

Boa leitura! (A redação)

Macumbeiro 2.0. faixa a faixa

por Valciãn Calixto

Macumbeiro 2.0 é um EP no qual eu falo abertamente sobre as minhas vivências recentes na macumba, pesquisas e sobre a espiritualidade afroindígena dos terreiros de uma maneira objetiva, didática, pedagógica, contextualizada e poética como forma de mostrar que todos os preconceitos e mitos criados pelo racismo em torno das religiões de matriz afro no Brasil não fazem sentido e não possuem fundamento nenhum. Ou seja, é também um combate à intolerância religiosa por meio da arte, da música.

Capa do ep Macumbeiro 2.0, de Valciãn Calixto

Com este trabalho abordo a incorporação de tecnologias do nosso tempo ao dia a dia das nossas macumbas, o que não é uma questão, um pensamento fechado em si, mas mais um chamado à reflexão. E tecnologias não só de dispositivos, ferramentas, mas de ritmos atuais como o brega funk e o reggae, por exemplo. Nesse sentido, por opção, procurei me afastar um pouco do batuque, dos toques, dos tambores de terreiro e sonoramente me aproximar mais de ritmos que dominam os streamings. Até porque ter um disco chamado Macumbeiro e um ijexá, um  barravento ali numa faixa qualquer seria muito óbvio e essa não é a minha praia.

Entretanto, preciso dizer que não é um afastamento total, o coco, por exemplo, está presente, sendo um ritmo negro nordestino e, tem duas faixas nas quais busco uma aproximação, uma lembrança melódica das músicas tocadas em romarias e benditos cantados em procissões como essa abaixo que eu gosto demais, uma música em compasso 3/4, uma melodia que eu acho difícil de cantar, belíssima.

No Norte e Nordeste brasileiro são comuns viagens a cidades como Juazeiro do Norte no Ceará e Santa Cruz dos Milagres no Piauí, que abriga a terceira maior romaria da região. Durante o trajeto, os romeiros e romeiras, praticantes das mais diversas correntes espirituais, ouvem músicas sobre figuras históricas como Padre Cícero, locais sagrados, aparições, uma crença mais popular muito forte no interior dos Estados. Como pedido, vou fazer um faixa a faixa a seguir, após toda essa intro.


Fala Majeté

Foi a última faixa finalizada e ironicamente é a que abre o disco. Coloquei nos créditos como se Estamira e Bàbá King tivessem gravado um feat comigo, uma vez que uso fala deles. Tive contato com a história de Estamira em 2020, quando a Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio anunciou o samba enredo “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu”. Ali fui assistir ao documentário do Marcos Prado, de 2006, que leva o nome dela.

Sei que já agora nos últimos dias eu estava trabalhando nos detalhes finais do EP e, mexendo no Youtube, me aparece a entrevista com o Bàbá King, eu já conhecia, mas ela ter aparecido em vídeos sugeridos pra mim naquele momento me soou como um sinal para usar a fala dele, foi um estalo, Exu soprou no ouvido, com certeza. Então juntei o trecho do documentário sobre a Estamira, no qual ela atende uma ligação e fala em línguas com Exu, referindo-se a ele como “majeté”, que eu gosto de pensar que é um acrônimo para “majestade” e na sequência, editando e cortando, botei o Bàbá King como se ele fosse o próprio Exu respondendo à ligação dela.


Exu Não É Diabo (Èsú Is Not Satan)

Essa faixa me deu um trabalho bom para alcançar esse resultado. Até porque foi a minha primeira mixagem e masterização da vida. Comecei esse processo trabalhando em cima dos instrumentos/arquivos MIDI dentro do Cubase, software de gravação de áudio, ao invés de convertê-los para o formato Wave e assim deixar o projeto mais leve para o notebook processar. Aí na moral da história, deu pau, eu fui adicionando efeitos enquanto mixava, adicionando plugins e, de repente, o projeto não abria mais, eu ME DESESPEREI grandão (risos). O que me salvou e salvou a faixa foi participar de um grupo no WhatsApp com uma galera que também trampa com gravação home studio. Um músico lá me fez perceber onde eu estava errando e aí foi só alegria.

Sobre a música em si, eu usei um sample do grupo Samba de Coco Irmã Lopes, que atualmente é regido pela mestra Severina Lopes. É uma família tradicional e centenária com a cultura do coco em Pernambuco, que antes tinha à frente o mestre Calixto. 

(Pesquisando, já notei que em diversos estados do Nordeste há famílias Calixto como a minha própria aqui no Piauí,, com presença muito forte de músicos. Na Paraíba, por exemplo, tem a família do falecido seu Zé Calixto, sanfoneiro importante daquele Estado).

Então depois que selecionei o sample, fui montando a música, os arranjos, adicionando os instrumentos. Comprei um cavaquinho no início do ano, aprendi a tocar só para gravar nessa música. Exu soprou no ouvido, com certeza, porque eu queria muito uma sonoridade diferente dos meus outros trabalhos e a solução veio no gingado do cavaco. Embora eu tenha usado um trecho bem curto como sample, quando fui mandar a música para os streamings tava morrendo de medo de dar problema com direitos autorais porque não teria como pagar, por isso faço questão de sempre citar de onde peguei o sample, dando os créditos, que é o que está ao meu alcance. A faixa ainda se fortalece com o sample de ‘Fora Bolsonaro’, reza cantada em um congresso por Dona Palmira da Paraíba.


Pela Dor

Essa entra naquele perfil que citei no início do texto falando da aproximação sonora com os benditos e músicas de romaria. Tem outra coisa que é assim, desde os mais velhos aos Encantados na macumba, nós, mais novos, ouvimos dizer que há quem chegue à espiritualidade, ao terreiro pela dor e outros que chegam pelo amor. Tipo, o Paulinho da seleção brasileira, vi numa entrevista a mãe dizer que ele buscou o candomblé por conta própria e pelas referências na família, ou seja, foi pelo amor. Eu busquei pelo amor também, pela musicalidade, pelas referências negras que preenchem espaços e memórias afetivas em mim e mesmo me tornando macumbeiro pelo amor, acho que consegui expressar nessa faixa um pouco sobre muitas pessoas que buscam um terreiro quando estão passando por momentos turbulentos da vida. Na macumba se sentem tão acolhidas que encaram entrar para a espiritualidade, fazer parte, cultuar os ancestrais como uma forma de gratidão pela cura, pela graça alcançada.


Desmistificando Pombagira

Essa faixa era pra ser assim um sambão antigo, tentei dois samples e nenhum funcionou. Daí fui testando timbres harmônicos sem uma base e a música caminhava para algo eletrônico, segmento do qual tenho poucas referências, então não quis arriscar, mas ouvindo e reouvindo o que tinha gravado até ali, sentia no balanço, na pegada algo que me remetia ao reggae e como eu já tinha Reggae dos Orixás, não queria dois reggaes no disco (risos), foi aí que percebi como o brega funk é muito semelhante ao dub, uma variante do reggae e eureka: a música vai ficar foda em brega funk. Incorporei o Dadá Boladão e mandei ver.

Tem um fato curioso nessa faixa que é o seguinte: ela foi gravada ainda em 2020. Eu já tinha o arranjo geral todo pronto, incluindo o sample da Bhetania Lemme, que era uma youtuber e influencer macumbeira muito conhecida nas redes sociais. Ela faleceu no início de 2021 logo após o parto e eu fiquei, além de assustado, abismado, pensando sobre a importância de a gente fazer o que tem de fazer enquanto pode e com o que tem disponível. Definitivamente não temos tempo a perder, ainda mais nessa pandemia. Ela gravava os vídeos dela quase sempre a capella, simples e alcançou 267 mil inscritos no youtube, quase 100 mil seguidores no Instagram ainda hoje. Falo assim pra que quem leia isso, largue a mão de se preocupar se não tem as condições ideais para fazer algo na vida, pois esse mundo, essa sociedade não é nem um pouco ideal para vivermos bem, só que é exatamente fazer as coisas com o que temos às mãos o caminho para um dia melhorá-lo. Então assim, que ela esteja cantando lá no Orum, que aqui com certeza continua sendo muito escutada.


Médium Ansioso

Essa faixa é prima-irmã de “Pela Dor”. É muito comum dentro dos terreiros, quando o filho de santo é novato ter pressa para tudo, quer saber, conhecer tudo em uma única conversa, quer descobrir quais os Encantados e Encantadas da sua família espiritual, atropelando as fases que deve seguir na espiritualidade. Tentei traduzir isso, que é bastante corriqueiro, e musicar um pouco desses atropelos, eu já fui esse médium ansioso, mas percebi que como diz Eclesiastes:

Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.

Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;

Tempo de matar [o Bolsonaro kkk], e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;

Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de gravar e tempo de lançar.

Livremente adaptado, risos.


Reggae dos Orixás

Gosto muito de como essa música surgiu. Ainda sobre o papo de incorporar tecnologias do nosso tempo ao dia a dia das nossas macumbas, desde 2017 eu  mantenho um blog chamado Umbanda USB, redes sociais e um grupo no WhatsApp para compartilhar vivências macumbísticas das diversas correntes do Brasil e perceber o tanto de riqueza espiritual que nós temos.

Então um irmão lá desse grupo, que é professor e ator, tava me falando que sentia falta de uma música contando a história dos Orixás, “algo parecido com Faraó Divindade do Egito”, ele disse citando o hit clássico e histórico do Olodum. Quando foi de noite após essa conversa, de madrugada eu comecei a compor e curti demais o resultado. É uma faixa que vem para que os macumbeiros se identifiquem instantaneamente ao ouvir, possam ter como referência, quem sabe. Torço muito.


Macumbeiro 2.0

Só eu mesmo pra lançar um podcast dentro de um EP, risos. Nessa faixa eu usei como música de fundo algumas canções do pai de santo Zé William, da Tenda Santa Bárbara, situada no quilombo Morada Nova, cidade de Lima Campos no Estado do Maranhão.

Esse disco do pai Zé William toca muito nos terreiros aqui da região. E com essa mistura e edição que fiz pra faixa, há um encontro de gerações, enquanto eu me digo Macumbeiro 2.0, por conta das tecnologias, ele vive em um povoado que falta ainda infraestrutura em diversos setores, mas independente dessas questões sociais, ele é o meu passado, minha estrada, quem veio antes; eu sou a continuidade dele, assim como os filhos de santo dele e é essa continuidade, esse movimento que possibilita que quem veio antes possa ser cultuado hoje e no futuro.

Na  letra eu comento algumas reflexões que vinha maturando há algum tempo. Por exemplo, eu tenho o grupo Umbanda USB do WhatsApp como um “terreiro virtual”. E desde lá eu digo que todos ali são macumbeiros 2.0 Com os anos e minha vivência fui amadurecendo essa perspectiva, essa tese que agora ganha vida com esse trabalho. Esse trabalho podia facilmente ser uma dissertação se as academias permitissem.

Hoje, percebo que há uma disputa de narrativa sobre as origens da Umbanda muito centrada no eixo Sul/Sudeste do Brasil que apaga a Pajelança, o Tambor de Mina, o Terecô e a Encanteria, exclui os fundamentos indígenas com o debate e esquece, porque desconhece e não há interesse, a diversidade, pluralidade e riqueza das macumbas nortistas e nordestinas.

Por exemplo, pelo que percebo e pude ver, presenciar, além de pesquisar, aqui no Nordeste boa parte dos terreiros tem no nome Tenda Espírita Santo Tal, ou Tenda Espírita de Umbanda Entidade tal, e todos se assumem umbandistas, mas nunca perdendo de vista suas particularidades e raízes, com isso, reconhecem-se umbandistas e terecozeiros, umbandistas e mineiros, umbandistas e juremeiros etc. O que eu quero dizer é que a Espiritualidade Macumbística do Norte e do Nordeste do Brasil enriquece e engrandece a Umbanda de uma forma tão linda que o Sul e o Sudeste desconhecem. Eles tentam universalizar o que eles têm lá de rito, apagando o que há aqui, de forma consciente ou não nessa disputa de narrativa e espaços.

Essa faixa é também sobre isso. É mais discursiva, reflexiva. J. B. de Carvalho, que no século passado gravou vários discos de giras de macumba, sempre trazia momentos mais de conversa, de diálogos assim nos discos dele. Acho que estou bem de referências.

Acompanhe Valciãn Calixto no Bandcamp, YouTube e Spotify.