Todo ano, quando chega a hora de montar essa infame listinha, me faço a mesma pergunta: afinal, pra quê serve uma lista de melhores discos do ano?
Depende da intenção. Pra mim, e isso vem se confirmando nos últimos anos, mais do que uma lista de “melhores” é uma lista dos meus discos favoritos do ano e que, com sorte, pode servir para ajudar alguém que esteja em busca de novos sons, ou que queira se atualizar do que rolou nos últimos doze meses. Sobretudo, são discos que quero continuar ouvindo em 2024 e além, e que adoraria que outras pessoas conhecessem. Independente de hypes, campanhas de marketing e presença em playlists editoriais.
Pra fazer render o modelo de listas individuais que adotamos aqui na redação nos últimos dois anos, deixei de fora alguns discos que estariam na minha lista, mas já apareceram na de Hugo Morais, como os do Antiskeumorra e o do General Junkie. Assim, abri espaço pras mais coisas estranhas na minha lista. Paciência.
Esse ano, além dos trabalhos inéditos lançados aqui e alhures em 2023, inclui uma retranca com algumas reedição e resgates que achei que mereciam o destaque. Afinal, nem só de novidades da última semana se faz um ano na música, e estimular a memória faz bem a saúde.
Enfim, eis os meus discos favoritos de 2023.

Mateus Fazeno Rock – Jesus Ñ Voltará
Em seu segundo álbum, o cantor cearense eleva seu projeto estético de rock de favela, incorporando de forma mais contundente a linguagem do hip hop . Jesus Ñ Voltará é um trabalho que soa extremamente pessoal, mas também coletivo, com outras vozes como a de Jup do Bairro, Brisa Flow e Nego Célio somando-se a de Mateus. Temas como violência policial, dependência química, desigualdade e a precarização do trabalho, misturam-se à espiritualidade, amor, amizade e comunidade, traçando um retrato complexo e por vezes contraditório do Brasil periférico. Não é um disco niilista como a faixa-título pode sugerir, mas sim um manifesto de afirmação de força e resistência, mesmo diante da adversidade – abre com a pesada faixa-título e termina em clima de celebração com “Noite”, cântico de muitas vozes entre o funk e o samba de roda. Forte, pop, poético – pra mim, o grande disco do ano.

Economic Freedom Fighters – Respeita Os Cria
Depois de instigar com o single “Força Forte”, lançado ainda em 2021, o trio carioca enfim chega a um registro de mais fôlego com este EP, que traz essa e mais cinco faixas. Rock de guitarras noventista, suingado e político que contagia desde o riffão de “Afropessimismo”, que abre o trabalho. Apesar de ser um registro curto, Respeita Os Crias é um bem-vindo sopro de ar fresco na cena indie rock brasileira. Olho nesses caras.

Toni – AYA
Guitarrista e compositor tarimbadíssimo, tanto com o grupo Rosa de Pedra como com trilhas sonoras para cinema e teatro, Toni Gregório fez sua estreia solo com um disco de música preta planetária. Afrobeat, jazz, música brasileira, rock, acenstralidade e ficção científica colidem e convergem em um álbum que a rigor não é nada disso, mas é tudo isso e algo mais. Quem quiser se aprofundar nas influências e referências do disco pode ver/ouvir a entrevista que fizemos com Toni pro nosso podcast, mas talvez ouvir AYA às cegas seja ainda mais estimulante. Na dúvida, ouça primeiro e veja a entrevista depois.

gueersh – Tempo Elástico
(Spotify / Bandcamp / YouTube)
A estreia da gueersh é como uma dobra temporal – há um sabor de anos 90 e início dos 2000, mas ao mesmo tempo tudo soa bastante contemporâneo. Com três guitarras na formação e um senso de aventura latente, Tempo Elástico alterna entre a delicadeza pop e a vontade de fritar. Quando os dois impulsos se encontram, surgem pérolas como “Luz Guia”, com mais de 10 minutos que passam feito brisa. Dica: ouça lendo a entrevista que fizemos com eles em abril, aqui. Dica 2: ouça também o EP Fogo Amigo, que saiu em 2022 e é tão legal quanto o álbum.

Water From Your Eyes – Everyone’s Crushed
Um disco de rock sob o peso do capitalismo tardio é assim: caótico, irônico, radical e desobediente. Que um disco tão certeiro quanto Everyone’s Crushed seja criação de uma dupla de jovens de vinte e poucos anos quase faz o cara acreditar que a humanidade ainda tem jeito. Só quase. Enquanto isso, dá pra imaginar um futuro em que faixas como “Bailey” e “Buy My Product” são reconhecidas como novos clássicos a puxar uma nova onda do digital hardcore. Em tempo: na reta final do ano, a dupla dobrou a meta e lançou uma versão remixada do álbum, Crushed By Everyone, altamente recomendável pras viúvas do Atari Teenage Riot.

Wednesday – Rat Saw God
Nosso repórter Pedro Lucas Bezerra já previu a volta do alt-country como uma da grandes tendências da música para 2024, e a semente desse retorno talvez esteja aqui. Centrada nas composições da vocalista e guitarrista Karly Hartzman – que iniciou a banda como um projeto solo, diga-se – a Wednesday faz aquele rockão barulhento que a gente gosta, mas com dois pés no campo. Neste quinto e melhor disco até agora, o quinteto eleva essa inusitada combinação – imagine a dor de ser shoegazer no interior – ao volume 11, como prova o single “Bull Believer”. Melhor disco de rock do ano, fácil.

Fever Ray – Radical Romantics
Já o melhor disco de rock que não é rock de 2023 é esse aqui. O retorno triunfal da Fever Ray (aka Karin Dreijer) é um acerto de contas sentimental. O amor visceral e radical dá o tom, acompanhado por intricados arranjos de percussão eletrônica, ethos punk e vocais dementes, às vezes saudavelmente banhados em delay. Algo como as Raincoats reprocessadas por um ciborgue primitivo. Pra ter uma ideia do tom geral, ouça “Even It Out”, faixa de vingança sincera composta e dedicada ao moleque que praticou bullying contra a filha da artista na escola. Gostamos.

Young Fathers – Heavy Heavy
(YouTube / Spotify / Bandcamp)
Tem saudade do TV On The Radio? Eu tenho. Se você também, pode se consolar neste disco dos Young Fathers, trio de doidões da Escócia que segue a mesma cartilha de psicodelia flamejante e elétrica do TVOTR, mas com muita personalidade, sensibilidade cosmopolista e um senso de humor meio demente. Heavy Heavy poderia ser um disco enviado do futuro ou uma pérola do passado recém-descoberta. Sem época, sem pátria, sem lealdade a nenhuma convenção estética, o que importa mesmo é o talento do trio para criar melodias e arranjos caleidoscópicos, que sempre conseguem surpreender e se manter frescos mesmo após repetidas audições.

Yo La Tengo – This Stupid World
Uma banda com quase 40 anos de carreira não tem direito nem obrigação de continuar lançando discos bons assim, mas o Yo La Tengo segue contrariando e instindo em continuar bom. This Stupid World é um disco conciso, que dá uma aliviada nos experimentalismos de estúdio para se concentrar em canções que se equilibram entre a doçura e o barulho. Destaque para a bonita “Aselestine”, uma das melhores composições do grupo na voz da baterista Georgia Hubley.

Ana Frango Elétrico – Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua
(Spotify / Bandcamp / YouTube)
O terceiro disco da cantora e compositora carioca é também um disco de produtor, guiado por experimentos de estúdio. Com um balaio de referências diversas, e um repertório entre canções próprias e outras escolhidas a dedo entre a safra mais torta da cena carioca (ver “Dr. Sabe Tudo”, de Rubinho Jacobina; e “Electric Fish” de Marcio Bulk), Ana pega um rumo diferente do que vinha trilhanto até aqui, deixando pra trás o neo-tropicalismo chique em direção a outras plagas, mais pop, solares e dançantes.

Bill Orcutt – Jump On It
Quem acompanha as minhas listas de fim de ano já conhece esse doidão, guitarrista americano que transita entre o punk, o blues e a improvisação livre. Aqui ele guarda a guitarra e apresenta dez temas acústicos que, mesmo em seus momentos mais delicados, ainda guardam o germe caótico dos seus trabalhos elétricos. Algo como assistir um por do sol em uma praia deserta, mas imprópria pra banho. Música feia pode ser acústica? Com certeza. E é legal, juro.

Damn Youth – Descends Into Madness
Thrash metal, crossover, basqueteira, músicas contra o imperialismo ianque, coletinho jeans, patches do Testament, riffs ligeiros comendo no centro – o novo disco da Damn Youth é puro anos 80. Soaria datado se tudo isso ainda não continuasse extremamente atual em 2023 – e vá lá, tem música sobre capitalismo de vigilância também. Uma das bandas de metal mais promissoras dessa geração vai pouco a pouco construindo uma discografia de responsa. Precisam tocar de novo aqui em Natal urgente.

Quarto Vazio – Fábulas
Entre o shoegaze e o midwest emo (aquele lá dos anos 90, não a versão soft de shopping center que voltou à moda recentemente), o quinteto de Maceió apresenta um diário romântico musicado com bons arranjos de guitarras e melodias vocais espertas, solares. Das oito faixas, quase todas poderiam ser hits do underground, mas “peanuts” e a faixa-título saem na frente. Outro bom nome pra circular pelos palcos dos festivais em 2024.

King Krule – Space Heavy
Em seu quinto álbum (oquarto assinado como King Krule), o coquetel de free jazz, pós-punk, trip hop e hip hop de Archy Marshall segue aceso e mais refinado do que nunca. Surgido a partir de uma meditação sobre conexão perdidas e o estado transitório das relações, Space Heavy é um disco melancólico, mas com intervalos de luz. Vide “Hamburgerphobia”, lembrete que a coleção do bicho deve ter uns discos de rock no meio de tanto álbum cabeçudo.

Daniel Villarreal, Jeff Parker & Anna Butterss – Lados B
Recorte de uma sessão realizada para o álbum Panamá 77 do baterista panamenho Daniel Villarreal (maior ausência na minha lista de melhores do ano passado, aliás), Lados B não é um disco de sobras como o nome pode sugerir, mas uma obra completa e única, nascida a partir do encontro e do diálogo entre três músicos, capturado ao vivo como um filme de cinema verité, na tradição dos melhores discos de jazz. Ao lado da baixista Anna Butterrs, musicista veterana que já tocou com Phoebe Bridges e Aimee Mann e fez sua estreia solo ano passado com o excelente Activities, e do guitarrista Jeff Parker do Tortoise, Villareal é âncora que guia a caravana por um sonho jazzístico, pós-roqueiro e de forte acento latino.

Kurt Vile – Back to Moon Beach
Admito que já fazia um tempão que eu não dava bola pra Kurt Vile – o último disco dele que eu gostei foi b’lieve i’m goin’ down…, lá de 2015. Não por acaso, Back to Moon Beach é a rigor um EP de gravações antigas e guardadas, algumas que remotam a 2019. Chapado e malemolente, é Vile em grande forma, familiar e acolhedor como um entardecer num dia quente. É também a última chance de ouvir o guitarrista Rob Laakso, que tocava com Vile desde 2011 e faleceu no início deste ano. A versão do streaming tem duas faixas bônus, ambas covers: “Must Be Santa”, de Bob Dylan; e “Passenger Side”, um Wilco das antigas.

mãe que dá medo – Manejo Fálico
(Bandcamp / Spotify / YouTube)
A estreia da dupla de Maceió é um pesadelo febril com gosto de metal, punk, harsh noise e eletrônica. Talvez não seja pra todo mundo, mas quem busca algo mais do rótulo genérico “experimental”, tem muito a descobrir aqui. Até porque, o experimento em si não é o fim, mas o meio pelo qual a mqdm busca questionar as convenções que definem uma banda ou um disco de rock – e acabam saindo com perguntas mais interessantes do que qualquer resposta. No final, você foi a cobaia desse laboratório e nem notou.
Relançamentos, resgates & afins:

Jupiter Apple – Sugar Doors (A Jupiter Apple 4 Track Experience)
Sugar Doors é um resgate das demos que Júpiter gravou ali por meados de 2000 ao lado dos amigos Ray-Z e Clayton Martin, na época egressos da banda Os Ostras (lembra deles?). Embora o material não seja exatamente inédito, já que muitas faixas acabaram sendo retrabalhadas e aproveitadas em outros discos e singles, é interessante de ouvir como uma espécie de álbum perdido, ou ao menos uma versão alternativa de Uma Tarde na Fruteira, onde a maioria das faixas registradas aqui foi parar. Composições como “Open Letter”, “Sugar Doors” (versão em inglês de “As Tortas e as Cucas” do Sétima Efervescência), e “As Mesmas Coisas” são puro Júpiter, em toda a sua essência delirante.

Lori Vambe – Space-Time Dreamtime: The Four-Dimensional Music of Lori Vambe
Percussionista autodidata, nascido no Zimbábue mas radicado em Londres, Lori Vambe é um desses artistas raros, cujas criações circulam fora das convenções estéticas e comerciais. Inventor da drumguita, espécie de híbrido entre guitarra e percussão idealizado a partir de uma visão num sonho, lançou dois álbuns independentes nos anos 80, que agora são reunidos e resgatados nesta compilação do selo britânico Strut. Hipnótica, onírica e às vezes até meio pertubadora, a música de Vambe tem algo de quadrimensional, como sugere o título do disco. Se fosse pra tentar descrever, seria algo como um elo perdido entre afrobeat, jazz e música ambiente. Curiosidade extra: algumas faixas contam com a participação do pianista brasileiro Rafael dos Santos, que tocou de improviso acompanhando Vambe na drumguita.

Duster – Remote Echoes
Depois de lançar um discão ano passado (o todo bom Together – se não ouviu, vá atrás), os papas do slowcore aproveitaram 2023 pra abrir o baú de raridades. Remote Echoes é uma coletânea de demos dos anos 90, que contém versões rudimentares de faixas que depois apareceriam em outros discos da banda e mais alguns temas inéditos, como a linda “The Weed Supreme”. Indispensável para fãs, e imperdível para quem quer se aventurar no mundinho particular do trio, regado à base de space rock, guitarras delicadas e maconha.

King Tubby meets The Ring Craft Posse – Dub Too Much (Vol. 3)
Terceiro volume da série do selo Pirate Records que compila dubs raros e inéditos gravados nos anos 70 pelo produtor King Tubby com a The Ring Craft Posse, banda de apoio do cantor Blackbeard cuja formação incluía figuraças como a dupla Sly & Robbie e Carlton Barrett, baterista dos Wailers. Só isso já valeria o disco, mas ainda tem participações de vozes icônicas do reggae, como Horace Andy e Johnny Clarke, que aparecem desencarnadas, flutuando em meio à fumaça. É play, tocha e xau.

Cavalera Conspiracy – Morbid Visions / Bestial Devastation
Embora clássicos, os dois primeiros registros de estúdio do Sepultura foram produzidos de forma tão precária que parecem ter sido gravados no banheiro do nono círculo do inferno. Pra fazer justiça ao material, que é música feia de primeira, e também pra trabalhar um pouquinho a mágoa acumulada com os ex-companheiros de banda, os irmãos Cavalera decidiram regravar os dois discos na íntegra, e lançá-los simultaneamente. A dupla revisita o passado black metal sem saudosismo, mas com peçonha e vigor renovados. Se existisse, o Cramunhão certamente aprovaria.

Bob Dylan - The Complete Budokan 1978
(Spotify)
Bob Dylan At Budokan não é nem de longe o melhor Dylan ao vivo, mas sempre teve um lugar cativo entre os fãs por ser um registro raro de uma fase de transição do homem. Quarenta e cinco anos e muitos bootlegs depois, a passagem de Dylan por Budokan ganha um novo e ampliado registro neste box quádruplo, com 58 faixas e mais de quatro horas de som. Com arranjos pendendo pro soft rock e uma big band que inclui um invocado flautista (!), o álbum alterna entre momentos de deliciosa auto-heresia (ver “A Hard Rain’s A-Gonna Fall” em versão instrumental com sax de motel) e recriações, digamos, peculiares de clássicos como “Mr. Tambourine Man” e “Like a Rolling Stone”. O repertório, que compila na íntegra dois dos três shows que Dylan fez na cidade, também dá espaço para faixas de discos injustiçados, como Planet Waves e New Morning. Nem sempre satisfatório, mas sempre instigante: é Dylan em plena mutação.






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