Sara Não Tem Nome e os dias cinzentos que passamos

Foto: Julia Baumfeld

Sara Não tem Nome é mineira, artista multimídia que ataca na música, artes visuais e cinema há mais de 10 anos. Lançou em 2015 o ótimo disco Ômega III e em 2023 A Situação, seu segundo álbum. Um disco com cara de MPB e rock, mas que abre com uma marchinha massa em forma de mantra rogando por dias melhores. Em 1978, o artista Geraldo Anhaia Mello lançou um projeto também chamado “A Situação” em que exibe em um plano sequência Geraldo bebendo uma garrafa inteira de cachaça, enquanto repete a frase: “A situação social, política, econômica, cultural brasileira”.

Não é apenas semelhança com “Pare”, a citada marchinha que abre o disco que passa por dias que já se foram (o período pré-pandemia e de um governo que odiava as artes e o povo como um todo), mas que seguem causando efeitos a médio e longo prazo na sociedade.

Batemos um papo com a artista e ao longo da entrevista e dessa abertura você pode conhecer o trabalho dela nos links disponibilizados.

Já vou começar perguntando sobre a melancolia presente nos dois discos lançados. E um certo pessimismo. Qual a influência para a criação das músicas?

As influências são vastas, mas cada música tem influências específicas, porque não tenho me guiado em tipos de som, de estilo, de escrita. Então vou falar no geral sobre A Situação que é o álbum mais recente. O trabalho de Philip Glass que sempre esteve próximo de mim pela maneira que ele constrói as músicas dele. Nesse álbum tem esse lance da repetição e entrar novos elementos em cada repetição. Outras influências que eu já tinha, como a Jovem Guarda, a música Brega, entram na construção de alguns arranjos. Tem muito dos discos de vinil que eu escutava na minha infância com meu tio que tinham construção com sopros, violino, violoncelo. Construções épicas, contando histórias de amor ou políticas. Eu vejo esse álbum como bastante político, porque ele surgiu pra mim depois do golpe da Dilma, com “Dejà Vú” e segui com a construção desse álbum que só lancei com o fim do governo Bolsonaro. Foi um período terrível com a pandemia também, então eu vejo o disco como uma tentativa de narrar o que eu estava percebendo na sociedade, na minha vida. Eu não sinto que tenha pessimismo, nem nesse e nem no Ômega III. Eles passam de como vivo e sinto a realidade do Brasil. Que é o que muita gente vive e é abafada, tem esse mito que o brasileiro vive feliz, alegre em um lugar acolhedor. E acho que não é bem assim, temos vários aspectos de uma sociedade bem problemática. Nesses últimos anos a gente viu isso acontecer de uma maneira muito pesada, uma pobreza muito grande. Muitas mortes, governo autoritário e ideias fascistas crescendo. Então tento narrar o que vejo e sinto, se é duro e pesado é porque é o que sinto. É assim que a minha poesia tem acontecido.

Nesse último álbum, pensando em quem eu admiro, pessoas vivas contemporâneas, eu consegui trazer pessoas que eu admiro e me influenciam. O Tantão que cantou comigo na “Agora” que foi uma música que eu fiz durante a pandemia, Negro Léo, Alejandra, Luciane que fez a mix e master do álbum e cantou, colaborou de várias maneiras. A Desiree Marantes, que toca comigo, fez assistência de produção, tocou violino. Victor Galvão do projeto Tarda, que era uma banda que eu fazia parte nos últimos anos. Luiza Rosa, que também é da banda e uma artista que gosto muito e tenho me conectado nos últimos anos. Bernardo Bauer, que é um compositor e músico. Então foi bom ter essas pessoas próximas, que eu admiro, acompanho os trabalhos e puderam contribuir. Então isso foi o mais importante, ter essas pessoas queridas participando.

O primeiro álbum (Ômega III) foi um recorte da minha adolescência em Contagem (MG), minhas primeiras músicas e foi um processo bem mais curto. Porque foi uma residência artística na Red Bull Station onde eu tive duas semanas mais ou menos pra gravar, mixar e masterizar. Com uma banda que eu formei em São Paulo pra gravar esse disco e com ênfase nas letras, sem essa construção de arranjos mais complexa. Tinha uma coisa mais minimalista. Foi um disco pra eu me reconhecer como artistas. O segundo eu já tinha tido outra banda, gravado coisas e com essa experiência fui entendendo como queria gravar esse próximo álbum e tendo mais autonomia para produzir. Os dois tem proximidades, mas acredito que eles tem continuidade. Influências que se repetem, do rock, da canção, do folk. Uso de reverb na voz que eu gosto e dobras.

Pra você ver como funciona a questão da interpretação das músicas… Eu senti o político, mas também que poderia ser relacionado à vida no geral porque como você falou, passamos por momentos difíceis. A sua criação vem desde a capa do disco. Queria que você falasse um pouco também sobre esse lado visual presente em sua obra.

No meu processo criativo eu tento unir as linguagens: música, fotografia, vídeo, performance. Eu vejo tudo muito próximo da minha maneira de criar. As vezes eu estou fazendo uma música já vem uma imagem, as vezes estou fazendo uma foto e me vem uma letra. Então é muito fluido e eu costumo trabalhar com amigos próximos em todos os meus projetos. Nessa capa eu trabalhei com o Victor Galvão e Randolpho Lamonier que são da Tarda, o projeto que comentei que eu fazia parte. Estudamos juntos na Escola de Belas Artes de Belo Horizonte, então já desenvolvemos uma pesquisa há muitos anos. Eles vieram para me ajudar nessa construção da capa, fotos, visualizers. O Randolpho é de Contagem também, então eu conversei que queria essa coisa de fábrica, de protesto. A música “Parque Industrial” eu fiz pensando na cidade industrial, uma região que eu morei, que minha família trabalhou. E tem a parte de colagem que ele faz. Victor Galvão também participou da parte de construção musical, tocou e cantou. Colaboramos uns com os outros. O Randolpho trouxe uma coisa mais lúdica, mais colorida o que causou uma coisa chocante que talvez a pessoa não tenha noção do que vem no álbum. Um teatrinho montado no estúdio que tem a ver com as fake news. Então foi uma brainstorm. Para mim também é importante direcionar, porque alguns artistas convidam para fazer parte da equipe e termina que não fica tão dentro do que a pessoa queria. O figurino eu chamei a Juliana Franco e o Rafael Abdala que tem uma marca de moda que fiz uma campanha com eles. Um equipe pequena mas que respeitou o que eu queria, foi um trabalho afetuoso.

Além da capa, tem a persona que eu encarno para interpretar cada álbum. Tem o documental e o ficcional de pensar o figurino, a banda, a arte como um todo. Muda muito como o trabalho é recebido, como as pessoas se sensibilizam com o trabalho. No Ômega III o visual era diferente, cabelo curto, um collant, uma coisa mais rock. No A Situação não é só um formato de show, mas do jeito que fizemos o lançamento com mais musicistas, tem vários momentos no show. Vários humores. Momentos mais down, mais reflexivos e momentos mais pesados, mais rock e momentos mais nonsense como a marchinha. Ou a música sobre as dívidas, um momento mais Tom Zé, de deboche, ironia. Então eu tive retorno de pessoas que acharam mais triste e pessoas que acharam mais humorado. Eu achei interessante essa navegação por percepções diferentes. Porque eu não queria entregar uma coisas que as pessoas já recebessem pronta. O retorno que eu tive as pessoas perceberam a maturidade, a evolução criativa. Porque me propus a lidar com assuntos tão problemáticos a sociedade.

Por falar em questão problemáticas da sociedade, você citou “revés, volte 4 casas” e as contas a pagar. Alguns artistas entrevistados pela Roberta Martineli vem reclamando do encarecimento de se fazer arte nos últimos anos. Claro que tem as contas da vida “normal”, mas como estão as contas da vida artística? Até porque você tem uma equipe de produção. Tá dando pra viver da arte com essa retomada de shows?

Pois é, é difícil viver de arte em todas as áreas. Como eu não trabalho apenas com uma coisa, eu faço exposições fotográficas, de arte, música, também estou na área acadêmica fazendo mestrado. Então fico tentando entender a construção da minha carreira pelos caminhos que vão se entrelaçando. Mesmo estando em várias áreas tem os desafios, por estar em várias áreas é difícil ter uma constância de certos trabalhos por eu me dispersar. E ao mesmo tempo é um respiro para não ficar dependente de uma coisa. Mas como tudo encareceu, fica mais difícil fazer trabalhos mais desafiadores, críticos como o meu que tocam em certas ousadias e tocam em assuntos que incomodam. Na música a sonoridade não é tão acessível, então cria uma dificuldade de chegar em mais gente. Não tenho feito muitos shows, prefiro fazer poucos e bons pela equipe de produção. O mínimo para acontecer. Já passei dessa fase de ter prejuízo, é complicado trazer para realidade esse sonho de viver de arte. O que tenho tentado é que as pessoas entendam o que faço, então as vezes mudo o formato. Fui para Belém, Salvador, Recife sem banda pelos custos. Foi importante ir porque não tinha ido ainda. É uma sobrevivência complexa porque é instável, mas que me possibilita viver da cultura porque transito em várias áreas. Em função disso criei uma produtora, a Grão Pixel, onde faço assessoria, lanço trabalhos de amigos e outras pessoas, trabalhos de vídeo, produção, fotografia. Isso me possibilita ficar na arte.

Ainda em relação a essa questão financeira, se não tivesse aporte de leis de incentivo e patrocínio como os da Natura o disco do jeito que você gravou, com metais, convidados, seria possível?

Seria bem difícil, acho que seria um outro disco. A gente fez show de lançamento gratuito com uma equipe grande. É preciso recursos para se executar da melhor maneira e mesmo assim bota dinheiro do bolso, não recebe dentro do praticado atualmente porque foi um projeto que passou em 2019 e entreguei agora. Os valores ficaram desatualizados. Alguns artistas conseguem fazer do bolso ou com crowdfunding. Pra mim foi importante porque passou pela pandemia que foi bem difícil. O primeiro álbum foi próximo disso, um edital da Red Bull, mas era para residência de artes visuais e durante a residência propus gravar o disco e fiz um show lá. Esses espaços possibilitam esses trabalhos por ser um trabalho de experimentação e é um som não tão acessível. Sem esse tipo de espaço fica mais difícil fazer.

Como você lida com o tal do algoritmo e as métricas? Você como artista, imagino que queira que sua obra chegue a maior quantidade de público. Existe um plano?

Tem alguns artistas que trabalham com marketing digital, eu não tenho equipe, eu mesma que planejo tudo. Mas não fico apegada a estratégias, tento manter constância porque é importante e faço o que é possível. E conteúdo relevantes. Porque tem várias regras e ideias do que é legal publicar, mas muitas coisas que não me interessam. Mesmo sabendo que são conteúdos que atingem mais público, acho que as vezes são conteúdos que nem deveriam existir. (risos) Meu desejo é que se interessem por conteúdo relevante. Vejo que é difícil chegar em novos públicos, ainda mais sem investimento. É um trabalho orgânico, compartilhado por pessoas que se interessam. Tem muitos artistas que talvez pensem que eu trabalho de forma específica para um nicho, mas acho que não, que atinjo várias pessoas.

Para finalizar, nesse sentido da dificuldade de circular com banda pra mais longe tem pensado em algum edital de circulação? Estamos precisando de artistas novos aqui no Nordeste, inclusive nos festivais.

Tenho olhado sim e saiu a Paulo Gustavo, parece que vai sair a Aldir Blanc mais para frente. Tenho interesse em fazer o show o mais completo possível, mas a gente conta com muitas variáveis.