Festival DoSol 2022 foi uma viagem ao centro da nova música brasileira

O público girando ao redor DoSol na Arena das Dunas (Luana Tayze/Divulgação)

Achou que não ia ter cobertura do Festival Dosol pela Revista O Inimigo? Quase acertou! Mas fato é que fim de ano, correrias, prazo pra lá e pra cá quase atrapalham a redação, com todas as confraternizações e fins de festa ao longo das semanas, que quase comprometem esse texto. Apesar de tudo, ao fim e ao cabo, cá está nossa tradicional cobertura.

Passado o susto, mais uma edição se foi e essa de 2022 ganhou um ar especial por ser a primeira presencial “após” a pandemia. Da Via Costeira para a Arena das Dunas, o que levou a uma segunda leva de viúvos e viúvas: antes haviam os da Rua Chile, e agora há os da praia. Em papo com Anderson Foca, ele contou que o espaço onde ocorria o festival na praia passou por reformas recentemente, o que inviabilizou a realização lá. Se rolou perda no quesito beleza, agora perdendo a vista para o mar, ganhamos em acessibilidade, já que a Arena das Dunas fica no meio da passagem de todas as linhas de ônibus de Natal. Ponto ruim: preço de bebida e comida, complicado. A estrutura montada respondeu muito bem com palcos próximos, som e luz funcionando bem e por mais que muita gente tenha cornetado a escalação do festival (nós inclusive), ela funcionou atraindo um bom público. Dando a chance da juventude conhecer dois dinossauros da música brasileira: Cátia de França e João Donato.

Nordeste não teste

A programação do Dosol desse 2022 retornou com uma proposta mais nordestina no line-up: maioria dos artistas era de origem potiguar e de outros lugares do Nordeste, formando maior parte dos artistas que subiram aos palcos da Arena das Dunas. Exemplos maiores foram os de Cátia de França e Juliana Linhares, que trouxeram shows inéditos pra cidade do Natal. Cátia trouxe um apanhado de suas músicas clássicas, de discos como Vinte Palavras Girando ao Redor do Sol junto a composições de seu disco mais recente, Hóspede da Natureza, com uma banda formada por baixo, viola enveneada com diversos timbres de pedais e bateria, acompanhando sua batida de violão clássica, entre o repente e o suingue sincopado paraibano. Juliana Linhares, de sua parte, traduz a arqueologia do saber empreendida por Durval Muniz de Albuquerque na sua Invenção do Nordeste em um espetáculo que palpita entre o futurismo e a releitura de músicas pop do Nordeste brasileiro. Juliana, que também é atriz, é um nome singular na cultura das intérpretes brasileiras: canta baixo, expressa com os olhos os versos que irá entoar, mexe os braços e se agiganta, doma a plateia e a insufla, sabe gingar e sabe gritar e não teme a livre associação de enredos e canções que se encaixam no limite num repertório que caminha de Karina Buhr a Flávio José como quem guarda amuletos numa coleção. A formação da banda também é muito interessante: um violino, uma guitarra e uma bateria são suficientes pra fazer o som sair da nuance arcaica pra possibilidade eletrônica, sintetizada, sampleada, sem perder o compasso conceitual e ampliando a presença de Juliana, que por si só ocupa todos os espaços com sua voz.

Outros nomes que apareceram no palco em outros horários merecem destaque: a Bixarte, coletivo de João Pessoa que inclui músicos potiguares, como a percussionista Aiyra, chama a atenção pelo show contundente e enérgico, que combina com o palco grande em que tocaram. Jadsa Castro, por sua vez, fez aquele que talvez seja o melhor show do Festival: com baixo, bateria e ela na guitarra, improvisando e entrando aos poucos nas próprias canções, a baiana não brinca em serviço. Entre o grave de músicas como “Olho de Vidro”, “Já Ri” e “Mangostão”, Jadsa passeia com tanta destreza entre os highs and lows de sua obra que consegue acalmar, baixar o volume e conduzir o público pela intimista “Mergulho” e aumentar de volta a pressão com “Mangostão”, fazendo menção a Gal Costa ao longo do show, e hipnotizando os presentes com sua guitarra aguda e certeira. Não é pra qualquer um.

Ainda entre os nordestinos, o Glue Trip fez o melhor show deles em terras potiguares. Com uma formação que finalmente se encaixou na ideia transmitida nos discos, a banda de Lucas Moura realmente chegou à sua forma mais instigante, com suingue e psicodelia com a régua passada.

Juventude terrível

O festival trouxe esse ano atrações que são cara para a juventude nas redes sociais, nas praças públicas e bares poperôs Brasil afora. Há muito o que se duvidar do que a molecada anda ouvindo e tomamos uma dose cavalar de susto ao nos depararmos com o que acontece nos palcos festejados pelos imberbes e recém saídos do ensino fundamental e médio. Entre as novas atrações, a Supercombo agradou ao público, mas não a nós. Misto de show da Xuxa e festa de debutante, a banda é competente mas não parece conseguir atravessar o bueiro da festinha juvenil que se meteram.

A Far From Alaska, de volta a Natal após longo tempo, tocou cedo, com público cativo, agitou a juventude que se assemelhava aos fãs da Supercombo, mas deram um gás a mais e se destacaram com um palco emoldurado por um belo sol. A abertura do Festival, com o peso da Antiklan agradou bastante, apesar do cenário estranho do lado de um campo de futebol à luz do dia, contrastando com o gutural da vocalista Júlia Gusso e as roupas pretas dos integrantes. Fato é que o Antiklan conseguiu dar o peso diurno que merecia, disputando a atenção do publico com o jogo de México x Argentina que rolava nuns celulares aqui e ali. Na ala trash-punk do rolé, o Surra deu sua aula habitual.

Mas o ponto mais forte de êxtase da juventude certamente foi a banda sensação da rodada. É difícil segurar a presepada, então: Jovem Dionísio e a música topada no Tik Tok, dá não. Na moral.

Espaço para o artista potiguar

Entre os artistas potiguares, que eram maioria no line, Alê Du Black fez um show redondo, pronto pro estouro. Pop, num formato que lembra nomes essenciais do r&b americano dos anos 2000, como Missy Elliott ou Lil Kim, Alê tem tudo pra ser um grande nome da música urbana de Natal. Seja nas músicas, nas temáticas ou nos dançarinos. Na ala popzêra de rádio Luaz e Fortunato e Os Jovens de Ontem representaram muito bem. Potyguara Bardo fez um show expressivo e que a confirma na prateleira dos grandes nomes pops brasileiros atuais, sem delongas.

Gigantes

Num show mais cedo, levando uma galera fã do Instagram, JotaPê trouxe ao palco seu som brasileiro com uma banda formada por baixo e bateria muito competente. Segundo disseram, o baixista já havia tocado com Djavan e tudo mais, coisa fina.

Mais tarde, BK, rapper carioca, deixou impressionado quem não o conhecia. Acompanhado do fiel escudeiro JXNVS, apoiado no seu recente disco ICARUS, BK passeou por toda a carreira esmerilhando sem pudor no flow e nas bases, com a segurança dos grandes rappers, com a capacidade de passar de um lugar a outro do flow que só os sambistas ou grandes funkeiros têm, sem deixar a base represar, com a destreza dos gigantes. Quem não conhecia, agora sabe muito bem quem é o tal do Abebe Bikila.

Acima de tudo, João Donato fez um show com a tranquilidade de quem tava metendo uma jam com os amigos no fim de tarde na praia. Parecia que ele estava tocando com os brothers num lugar só deles, e que o público apenas observava pelas frestas a despreocupação dos virtuosos. Gênio.

Gol de quem?

Em clima de Copa, a volta do Pato Fu aos palcos natalenses teve gosto de final com placar elástico. A julgar pela comoção aos primeiros acordes de hits como “Sobre o Tempo”, “Menti pra Você, Mas Foi Sem Querer” e tantos outros que recheiam a discografia dos mineiros, dá pra acreditar que tinha gente que foi bater ali com o objetivo claro e expresso de vê-los, e nada mais. Tudo certo, muita emoção no ar, com direito até a declaração de fã do guitarrista John pro Far From Alaska, a banda “mais foda do Brasil atualmente”, segundo ele.

Até a próxima

O Festival Dosol 2022 pareceu deixar em dúvida uns e outros com a programação, mas afinal de contas, os shows foram em sua maioria muito competentes, alguns mais bonitos, e outros exemplares. Como sempre, prezando pela qualidade do som mais do que por telões ou outros elementos, o festival se destaca e se coloca no centro da nova música brasileira.