Saídos do olho do furacão, os festivais independentes brasileiros voltam tentando recompor os espaços deixados quando tudo parecia ruir em 2020. O cenário mudou, mas aquilo que surgiu ou se confirmou parece ter se afirmado com mais força ainda. São novos tempos, novas vontades, mas a música brasileira permanece não apenas com a força da fênix, como quem renasce, mas agora com a profundidade dos oráculos, jogando enigmas pro futuro. A nova edição do No Ar Coquetel Molotov retornou, pois, com esses oráculos abertos e utilizando uma velha casa do festival, mas que substitui o local das últimas edições pré-pandêmicas com muito sucesso: o campus da UFPE. Dessa vez, utilizando não o palco do teatro da UFPE, que em anos anteriores recebeu nomes que vão de Racionais MC’s a Peter, Bjorn and John e Dinosaur Jr, mas os espaços em torno, alcançando a concha acústica. Os headliners Marcos Valle, Don L, Tasha e Tracie, MC Carol e a inesperada parceria entre Supla e Letrux formavam um halo de novidade e reencontro (halo esse que pode ser representado por um grande círculo de luzes coloridas que ficou armado sobre o palco principal, a propósito), de volta à casa, que devolvem a nós o posto oracular do No Ar Coquetel Molotov, como exposição com cuidadosa curadoria do que se faz de atual e experimental na música brasileira (e mundial). Os nomes pernambucanos também chamam a atenção, como Léo da Budega, Ivyson, Dersuzalá, Bione, Uana e outros, e demonstram o espaço cuidadoso dado para os nomes locais que são impulsionados para fora de suas bolhas.
Dividido em quatro palcos, com um maior logo na entrada do espaço, um outro na concha acústica, o palco tradicional do Som na Rural e uma novidade, um palco 360 menor numa tenda eletrônica, o festival oferecia espaço pra transitar e ser chamado pelos sons que vinham de várias partes, sem interferir nada nos outros ao redor. Ponto positivaço pro som de cada palco, em tempo: é raro ter tamanha qualidade com diversos tipos de sonoridade, sem perder quase nada daquilo que soa nos discos. O palco 360, chamado KMKAZE, era o melhor da noite: recebeu dois dos melhores shows da noite e foi um inferninho de dar inveja a qualquer calabouço de música eletrônica raiz.
O show do TAXIDERMIA, projeto de João Milet Meirelles e Jadsa Castro, escudados por Alejandra Luciani cuidando da mixagem ao vivo e por Cristina Souto na iluminação, foi talvez o mais impressionante e o mais interessante de todos na noite. Incorporando aspectos do dub junto a uma poesia que sintetiza e mimetiza o que há de cubista e popular nas letras de Jadsa, a parede sonora formada em cima de improvisos de Meirelles, apoiado pela mixagem habilidosa, é por demais potente ao vivo. Jadsa andava no meio do público, chamava pra perto, abria rodas, como quem inicia ritos. Quem puder ver um show do TAXIDERMIA antes de morrer, veja.
No mesmo palco KMKAZE, a MC Carol de Niterói não perdoou ninguém no estouro da boiada: enfileirando seus hits e piadas sobre aqueles camaradas que não cumpriram o que prometeram, ela tocou de “100% feminista”, “Meu namorado é mó otário”, e outras sem concessões e sem meias palavras, como sempre. Num formato parecido com o show que ela fez em Barcelona, no Primavera Sound, a carioca fez tremer as bases do entorno: tocando no mesmo horário que Tasha & Tracie, lotou a tenda eletrônica ameaçando botar tudo abaixo (por sorte o pessoal parecia estar aquecendo ainda, mesmo que a dados momentos parecesse que estava tudo fora de controle). Noutro palco a alguns metros, mais ameno, Marcos Valle se aproximava do final de seu show com setlist enfileirando hits: abrindo com a faixa “Azymuth”, que deu nome ao notório grupo, o carioca cometeu diversas bruxarias por trás dos teclados, passeando de lado a outro da carreira, fazendo Previsão do Tempo tabelar com seus sons mais ‘saúde é o que interessa o resto não tem pressa’, e até mesmo convidando a boy band Jovem Dionísio pro palco. A banda curitibana teve uma recepção não tão calorosa: diante dos integrantes vestidos com seus uniformes à la mecânico de automóvel, um gaiato perguntou se era uma intervenção do quadro Lata Velha, do programa de Luciano Huck.
No palco principal, Letrux e Supla fizeram uma apresentação tão inesperada quanto surpreendentemente boa. Supla, o Papito, é um showman de mão cheia: embora a todo momento emule a figura algo espalhafatosa que forjou, sua segurança no palco e sua capacidade de conduzir uma plateia são de nível que só mesmo os grandes rockers sabem fazer. A conexão que Letrux criou com ele, que indiretamente foi atravessada pela recuperação que o Cansei de Ser Sexy propôs ao fazer um cover de uma música de Supla anos atrás, parecia natural, até. A conexão com o CSS pareceu mais evidente quando a dupla cantou ‘Fora da Foda’, parceria de Letrux com a ex-vocalista da banda paulista, Luisa Lovefoxxx. Pensando sobre as redes lançadas por Letrux, é possível enxergar como ela quer criar uma grande amálgama hedonista em torno de figuras excêntricas, margeando o caricatural, mas que no fundo apresentam de forma expressa um sensualismo e uma melancolia típicas de um Brasil urbano, desajustado dos padrões impostos pelo cânone da música brasileira. No fim, a dupla tocou The Doors e Supla fechou sua participação com versão extrema de ‘Garota de Berlim’.
No mesmo palco principal, Giovani Cidreira apresentou um show especial junto aos Boogarins Rafael Vaz (que tocou na mesma noite com o projeto Carabobina, em parceria com Alejandra Luciani, que tocou também com o TAXIDERMIA) e Benke Ferraz, que acompanharam o músico baiano em uma apresentação inspirada, vestido com uma roupa metálica que refletia as luzes, dando o tom espacial de seu Nebulosa Baby. O cantor ainda fez uma participação no show de Don L, mais tarde. Os rappers Don L e Flora Matos justificaram sua relevância e mostraram porque sobram hoje em dia no cenário do rap brasileiro: Don L pela capacidade de trazer ao palco seu disco em detalhes, com execuções vocais caprichadas e sensibilidade para criar um ambiente que mergulha o público no seu discurso, o cearense tem aquele que talvez seja o show de rap mais coeso entre os nomes com trabalhos recentes. Já Flora Matos, advinda das diversas tretas que criou nas redes sociais nos últimos tempos, parece ter sido o nome mais esperado do evento: a plateia toda cantava cada música, e a cantora tem realmente o ofício de popstar que aparenta nos seus arroubos mais performáticos no Twitter. Figuraça no palco e fora dele.
Cabe mencionar também o espaço dado a nomes como Jup do Bairro e Rico Dalasam, rappers cujo discurso político se confunde, no fim, com uma busca íntima, com exposições intimistas de suas idiossincrasias e meditações. Jup teve alguns problemas com o som e quase houve um momento de levante no palco, mas nada que não se tenha conversado e resolvido em instantes, com muito All you need is love e porrada de beat grave; Rico, por sua vez, pouco cantou desacompanhado: o público parecia esperar o show dele há muito e parecia uma grande celebração em conjunto.
O resultado do Molotov afinal é o mesmo de sempre, e isso é muito pra quem está na estrada há tanto tempo: trazer novos e velhos artistas compondo uma rede que, ao fim e ao cabo, parece interligar todos os diversos discursos, mas não de forma a unificar e deixar em uníssono. Melhor: como nas grandes cúpulas, como numa concha acústica, deixando o som se espalhar e atravessar todas as frestas.