A mais recente edição do Festival Mada rolou depois de dois anos de frustrados cancelamentos devido à pandemia, celebrando o retorno com nomes que estavam confirmados desde 2020 somado a novos nomes pedidos pelos fãs internet afora. Em 2022 finalmente o Mada pôde colocar em cena um lineup repleto de novos nomes da música brasileira e não mais formado por uns medalhões batidos (Pittys, Nandos Reis, Natiruts ou quetais), como era tradicional nos seus lines. O que se viu no festival, inclusive, foi um chamamento ao futuro, apontando nas mudanças que se avizinham no plano político, em formas de construir futuros sonoros, apontando pras expressões eletrônicas, pros sons vindo das periferias, e para o protagonismo feminino, mais uma vez em grande número nos palcos (e fora deles, nos bastidores). Alguns percalços aqui e ali, umas latas e garrafas pelo caminho, atrasos e mudanças de horário que confundiram a multidão se acotovelando no pé dos palcos, mas afinal dá pra passar a régua e dizer que o Mada finalmente se colocou nos trilhos do contemporâneo (ainda que com atrasos).
O futuro não demora
A atualização do formato do festival é evidenciada pela presença de rappers e nomes da música eletrônica natalense em destaque: as presenças de V. Motta e Cazasuja, que levou o rapper Amém Ore, outros chegados de sua banca e demais amigos de microfone pro palco, e de Janvita, Pajux Frank, Íguia T e Elisa Bacche representando o mais fino do house & techno das noites altas no Beco da Lama, coroam duas cenas que já estão consolidadas e seguem em expansão.

Os rappers Emicida e Djonga, em plano nacional, já subiam ao palco como veteranos, um trazendo seu show digno de arenas, que repete o formato que vai a um Rock in Rio ou Lollapalooza, com a simulação de grandes vitrais de igreja, e o outro elevando à máxima potência sua energia interna, gritando tanto como se estivesse sem microfone, ignorando completamente a preservação de suas cordas vocais. O público de Djonga visivelmente admira esse salto sem rede rumo à aniquilação completa da própria voz, que compromete até mesmo a execução das suas músicas, atropeladas e atravessadas pela radicalidade gritante do mineiro.

O festival foi vitimado por atrasos nos dois dias, mas a programação da sexta foi completamente atrapalhada por mudanças de horário em cima da hora: o show de Letrux foi substituído de surpresa pelo DJ set de Janvita e Íguia, que improvisaram o set de bate pronto e seguraram a plateia. Motivo: Emicida tinha um voo internacional marcado e correria o risco de perder se não rolasse essa troca de posições na programação. Cabe pensar se isso não poderia ter sido avisado anteriormente, mas enfim. O fato é que a missa do rapper paulistano, cheia de músicas sobre amizade, amor e palavras de esperança, tem muitos adeptos e fãs que rezam neste credo, arena livre pra seu culto. Os coros pró-Lula foram retumbantes no show de Emicida, mas não apenas no dele: eram recorrentes os Lula-lá, só encontrando dissonância no show de Don L, em que se ouviu um ‘lutar, criar poder popular’, com direito até a bandeira da Coréia do Norte brandida por alguém na plateia.

Ainda na sexta, Josyara tocou num palco cruzado pelo logotipo de seu novo disco, ÀdeusdarÁ, e com elementos de palco que pareciam gigantes cacos de vidro posicionados entre a banda. A cantora baiana cantou Chiclete com Banana, explorou os limites do violão e defendeu seu disco com primor, esticando sua voz que parece vir de um cruzamento entre Cátia de França e Juçara Marçal. Infelizmente, a cantora foi vítima do som terrível do festival, muito atrapalhada pelos diversos percalços no palco, mas nada atrapalhou a evolução, a cadência, os ruídos de Feira de Santana traduzidos em seu violão.

Faz o L
Letrux, ainda na sexta, se apresentou à plateia e comentou como é bom esse encontro, pois “estamos vivos aqui, pessoas já não estão mais aqui e nós estamos”. Em seguida, Letrux dedicou a faixa ‘Salve Poseidon’ a um escorpiano que ela gosta muito: Luiz Inácio Lula da Silva. O Afrocidade, no sábado, levou seu pagodão brabo pro Arena das Dunas e pediu pra abrir uma roda de pogo avisando: “essa roda agora definirá as eleições”, respondidos depois por uma saraivada de olê olê olê olá. Benke, do Boogarins, subiu ao palco com uma camiseta da seleção brasileira versão vermelha, e puxou um ‘faz-o-L’ com o público. O Baiana System levou mais um ano sua pressão sonora e reiteradas vezes se ouviu coro de lula-lá durante o show, com o vocalista Russo Passapusso instigando os vários faz-o-L ao longo do show. Os potiguares do Fortunato e os Jovens de Ontem, que abriram o festival no sábado, tocaram de vermelho e se expressaram a favor do candidato do PT, mandando mais um faz-o-L. Lula, portanto, foi a tônica pop do festival (assim como ocorre em diversos outros festivais Brasil afora).

Pânico de nada
O rapper cearense Don L subiu ao palco acompanhado do rapper Terra Preta, da rapper Alt Niss e do DJ Roger P3, e entregou uma apresentação que reza na cartilha da tradição do MC + DJ, mas expande o formato com arrojo. Trazendo seu Roteiro para Aïnouz v. 2 para o Mada, Don L tocou os hits do disco, como “Vila Rica”, “Aura Sacra Fames”, e “Pânico de Nada” e foi ele próprio surpreendido com a reação do público, que fez coro nos ‘lararara’ da música “Primavera”. Don L no palco canta suave do mesmo modo que acelera o flow, com a mesma cadência que atravessa seus discos ao longo do set, puxando faixas da mixtape Caro Vapor, de 2013, e abrindo espaço pra seus companheiros de palco, divulgando o disco vindouro de Alt Niss, falando de um Brasil diferente, que está por vir (ou deveria estar por vir). Não por acaso, ao falar desse outro Brasil, recebeu como resposta gritos de ‘lutar, criar poder popular’, do setor comunista da plateia. Um dos shows mais impactantes da noite, transformou uma proposta sintética em um momento de catarse e comunhão com o público, numa condução segura que preservou o sentido de novidade e surpresa – pra ele e pra plateia.

Que estrago
Apesar do espaço ter aumentado em relação às últimas edições, em que havia divisão entre setores da plateia (o chamado LOUNGE, que hoje foi transportado pro alto das cadeiras do Arena das Dunas, em uma velha insistência da cultura do camarote introjetada no espírito natalense), problemas se impuseram desde metade da sexta-feira: não tinha lixeiras suficientes e nem próximas da plateia, o que forçou muita gente a jogar suas latas e garrafas pelo chão. A pista em dado momento ficou semelhante a um Woodstock 99, montanha de plástico e metal a ser desviada pelos transeuntes. A passagem para os banheiros era sufocada por estandes da feira, com diversos expositores, que afunilava o trânsito do público, o som muitas vezes oscilava de qualidade flagrantemente (o som do Afrocidade, por exemplo, não tinha grave e definição quase alguma, ficava inócuo, enfraquecido; na mesma pegada e em contraste intenso, o grave do Baiana System era ouvido em plenitude de qualquer ponto do festival).
Sombrou Dúvida?
Por uma força do tempo, o rock em geral esteve mais ausente da programação do Mada (mas não só do Mada, o rock esteve ausente nos últimos tempos dos charts, mas segue voltando a todo vapor). Entretanto, um dos grandes shows do festival foi responsabilidade dos guerreiros goianos do Boogarins, que seguem levando sua alegria por onde passam e decidiram trazer uma apresentação sóbria e direta ao Mada. Estreando no festival, tendo vindo no Festival Dosol algumas vezes, o Boogarins tocou parte do seu último disco cheio, Sombrou Dúvida, e passou por alguns b-sides registrados no disco de sobras Manchaca, com versões enérgicas e repaginadas, como as de “Lvco2” e “Inocência”, passando pelos primeiros discos, com versões de “Benzin”, “Doce” e “Avalanche” e “Foi Mal”. Entregando momentos de improviso e solos de bateria, a apresentação dos goianos ficou pros registros antológicos do Mada.

A outra banda de rock com vocação pras arenas entre as escaladas foi o Terno Rei, que embora tenha parecido aqui pra redação meio entediante, parece ter agradado ao público (chegaram relatos de que um rapaz foi visto chorando copiosamente na plateia). Ao final do show a banda foi atropelada pelos sucessivos atrasos e não houve tempo pra tocar o hit “Dias da Juventude”.

O rock não trouxe só alegrias a quem estava pelo Mada, entretanto: às 5h20 da manhã, após o acachapante Baile do DK, interrompido às pressas, entrou no palco para fechar a noite o projeto do gaúcho Fabiano Nasi tocando um indefectível rock dos pampas. Às 5h20 da manhã. Em 2022. Nunca é fácil.
Like a popstar
Marina Sena esteve em Natal em maio apoiada no hype de seu De Primeira e voltou agora ainda maior. Conduz a plateia como se o fizesse há 20 anos, dança, faz pilhéria, pede que o público cante mais alto, rebola e faz juras de amor a Iuri Rio Branco, namorado, produtor e baterista em sua banda. Finalizou o show dizendo ‘Eu sou Marina Sena de Taiobeiras’, como só os grandes podem fazer.

Potyguara Bardo, outro nome pop importante no lineup, levou seu show com banda completa ao palco, enfileirando forrós e um cover de “Wicked Game”, eterno hit dos by nights. Tocou os hits de seu Simulacre (2018) sentada na borda do palco, agachada próxima ao público.

Potyguara participou ainda do show de Linn da Quebrada, fazendo um dueto com a cantora, no sábado. Linn levou ao palco uma banda formada só por mulheres, e trouxe seu Trava-Línguas com arranjos renovados. No mesmo espectro do pop, com a empolgação de lançar o novo disco, que saiu na sexta, Luisa e os Alquimistas trouxeram ao palco seu Elixir e fizeram um show plano, jogo ganho, plateia conquistada.

Como numa música do disco novo de Luísa e os Alquimistas, o DJ natalense Danilo Kauan, que é mestre de cerimônias e condutor do Baile do DK, comandou o after do sábado às 4h da manhã com introdução do rapper potiguar Amém Ore, que iniciou o estouro da boiada rimando entre vitrais de igreja em totens posicionados no palco. DK, o dono do baile, surgiu no palco por detrás desses vitrais, com um figurino futurista e deu start no passeio entre as diversas expressões do funk carioca e da música das ruas periféricas do mundo, dando palco ainda pra artistas potiguares, como Vick Cabulosa (promessa de artista pop, fiquem de olho). Das festas potiguares mais conhecidas e frequentadas, o baile do DK segue um modelo que pode ser replicado em diversos palcos, assim como as paulistanas Gop Tun, Mamba Negra, Selvagem e Batekoo.

Noutro modelo de artista pop, a cantora Mayra Andrade, de Cabo Verde, fez um dos shows mais bonitos do festival. Surgindo no palco exibindo sua barriga de grávida, com umbigo tapado, a cantora era iluminada por uma luz amarela que a atravessava no centro do palco. O espetáculo todo foi plácido, lento, elegante. Curioso é que uma plateia ávida pra ver nomes que elevam a catarse pública tenha sido conduzida para se sublimar nessas frequências baixas, com os cantos em crioulo cabo-verdiano, os suingues sincopados, um jazz muito sutil. Conseguir chegar nesse entrelugar logo após a popstar Marina Sena e antes do Baiana System foi um feito, e é para poucas, também. Mayra cantou ainda uma versão de “Lamento Sertanejo”, e encerrou sua turnê brasileira com essa participação no Mada.
Enquanto recomeça
Por fim, o retorno do Mada parece apontar para um caminho interessante de valorização dos novos modos de produção da música brasileira. Expandir ainda mais a atenção dada às expressões das periferias, sempre com mais pessoas pretas e mulheres (cis e trans) no palco, mais figuras diversas. Como o próprio cenário musical do país parece agora se encaminhar para a retomada total pós-pandêmica, o que se espera é que nomes mais novos ainda estejam presentes no line (dar um descanso ao Baiana System, de repente, ainda que o povo natalense ame tanto as rodas de pogo do pagodão). Além disso, mais cuidado ao som, frise-se: é bom ouvir o grave definido de todas as partes.