O piauiense Valciãn Calixto é um artista com várias passagens por aqui. Ele lançou mais um disco, Seus Olhos Viam Deusas, que fala sobre sua vida e a vida cotidiana, rodeada de problemas. Problemas que muitas vezes nos levam para baixo, mas as vezes nos fortalece. Valciãn circula em torno do amor para do passado chegar ao presente e vislumbrar o futuro. Sempre passeando por estilos variados, assunto também abordado no papo que batemos com ele e você lê abaixo.
No disco anterior, “Nada Tem Sido Fácil Tampouco Impossível”, Calixto contou com participações de diversos artistas de outros estados, neste, com exceção de Bones, decidiu convidar músicos piauienses de gerações diferentes, são eles: Doka (Reação do Gueto), Mesclado Beats, Aivlis Amorim (Acácias) e Pedro Ben ( duben e ex-Alcaçuz). O escritor Agostinho Torres, que já havia dado as caras em Foda!, disco de estreia de Valciãn, reaparece brevemente neste terceiro trabalho em um dos interlúdios e até o sobrinho mais novo do artista também emprestou voz para o álbum. No fim do papo você pode ouvir o disco e conhecer duas novas artistas do Piauí.
O Inimigo – Pra começar, pergunto logo sobre o processo criativo. Você passeia por muitos estilos. Esse disco foi pensado pra ser essa mistura, foi proposital?
Valciãn Calixto – Então, nesse e em todos os meus discos há sempre a presença de diversos ritmos. Para mim é algo muito natural. Para o músico piauiense, na verdade. Nós possuímos uma proximidade e facilidade com todos os ritmos que tocam Brasil adentro. Se você precisar duma gig que toque de tudo, estilo banda de baile, procure músicos piauienses. Desta forma é que nunca consegui ficar preso a um determinado gênero, embora, a base que eu tenho pra tudo seja a batida clássica do rock. A partir dela, vou adicionando células rítmicas de outros estilos, sempre buscando por uma novidade, algo que soe nostálgico e ao mesmo tempo diferente, novo. Falando objetivamente, não foi um disco pensado propositalmente para haver essa mistura. Apenas as músicas surgiram como são, como elas queriam e eu as respeitei em suas intenções, cadências, melodias, harmonias, arranjos…
As letras tem tons bem pessoais. Até onde vai o biográfico no disco?
Eu sabia que queria falar de Amor, me desafiar nesse sentido, perceber o que eu alcançaria com a minha lírica nessa direção e se eu conseguiria escrever versos que tocassem o coração das pessoas que ouvissem esse trabalho. Acho que o contexto me ajudou, das leituras que eu havia feito, novas discussões que a nossa geração tem feito nas redes e no dia a dia, por exemplo, “Solidão do Jovem Preto” é uma adaptação do tema “Solidão da Mulher Negra”, mas no geral, 65% do disco é ficcional. Talvez a sensação que você tenha tido de notar um caráter autobiográfico seja pela força, pela potência das letras, talvez eu tenha encarnado bem enquanto compositor histórias que ouvi de outras pessoas e pus no papel. “Confusão de Pensamentos” é uma faixa que eu escrevi a partir de uma frase dessas imagens que se costumam enviar em grupos no WhatsApp ou postar em legenda de fotos nas redes sociais. A frase era algo como “como alguém que um dia a gente tanto conheceu se torna um completo estranho?”. Então nessa música eu parti desse mote e acho que fui feliz no todo da composição.
“Amor Verdadeiro”, por exemplo, é real, com alguma ficção (risos). Compus a música quando tinha seis anos de relacionamento com minha esposa, só que a gente dormiu numa cama de solteiro até semana passada. Foram nove anos, ou seja, a música estava pronta há um bom tempo, há três anos, mas só consegui lançar agora. E agora que lancei nossa realidade mudou (risos). Que bom! Parece até que era o que faltava pra gente conseguir comprar uma cama de casal (risos), pôr essa música no mundo. “Amor Pra Recordar”, “Amor Refeito”, o restante do disco quase todo é tudo ficção.
Você disse que passou por dificuldades, essas dificuldades ajudaram a criar essas canções? Pode falar sobre? Ou foram situações fora do contexto da vida de artista?
Eu estive desempregado em diversos momentos, e nessas épocas eu sinto que foi quando mais criei, mais produzi, mais percebi o artista em mim. O nosso sistema de venda da força humana, de trabalho em troca de dinheiro nos toma muito tempo, nos deixa bastante atarefados e também estafados no capitalismo, isso mina de diversas maneiras o artista na pessoa. Muito artista morre assim. Não que a pulsão pela arte morra, acabe, mas as obrigações sociais ferem de morte o artista. Ele deixa a cena musical, fica sem tempo pra ensaiar, para ouvir lançamentos, pesquisar novos artistas, sondar o que tá rolando de novidade, ler os sites especializados em Música e Cultura, outros.
Quando eu falei no Twitter que precisei abrir mão de muita coisa pra conseguir lançar, a gente pode pensar por vários caminhos, mas dois deles são: quando eu abro mão de comer algo, até mesmo de ir num show pra juntar grana e gravar, isso é abdicação. Quando eu abro mão de gravar com bateria acústica porque entendo que não vou ter grana suficiente pra isso, pra entrar num estúdio e, se eu não usar bateria eletrônica, kits de bateria no kontakt, eu não lanço nada, não lanço nunca. Quando eu abro mão de timbres orgânicos, eu estou “cedendo” dentro do que eu queria de melhor pra minha música, pra minha arte e assim evito que ela nem exista. Porque se eu esperar a condição ideal para gravar um disco do jeito que eu quero, do jeito que a crítica musical está acostumada, eu nunca lanço nada e passo a não existir.
Esses anos todos, de 2015 pra cá, percebi de forma muito evidente o quanto os portais torcem o nariz pra sonoridade que a gente alcança fazendo com o que temos à nossa disposição, dentro dos nossos limites, sendo artista independente, de nicho, do Nordeste. Se você pegar as bandas daquele momento que ficou conhecido como “rock triste”, ali entre 2017 e 2018, quanto delas ainda existem? Até mesmo os selos e produtores de eventos. E evidente que não é porque os sites não publicaram sobre os lançamentos daquelas bandas, mas também passa por isso, por uma espécie de exigência tosca que muitos críticos possuem com a suposta qualidade dos lançamentos independentes.
Não quero aqui que um jornalista fale de um trabalho apenas pelo esforço empreendido pelo artista ou pela banda, mas que ele possa ter um mínimo de abertura para pelo menos ouvir, pelo menos dar um feedback, se não vai publicar a respeito. Nesse sentido, só tenho muito de agradecer a todos que fazem o O Inimigo pelo espaço que meu trabalho recebeu nos últimos anos.
Vou tentar dar um exemplo mais evidente. O Fernando, do Floga-Se, a cada lançamento ressalta o quanto preciso melhorar meu canto. Isso está presente em todas os textos sobre meus trabalhos, assim como está presente as qualidades que ele, subjetivamente, também percebe num disco. Ou seja, não é uma falha, não é porque algo não soou bem que ele ignora totalmente um disco. E é por aí que eu entendo o papel da crítica especializada.
A questão da qualidade muitas vezes é subjetiva. Tempo desses eu critiquei a qualidade de alguns trabalhos que receberam dinheiro público e levei pancada. O caso que você está falando é diferente. Mas no geral muitas vezes obra “mal” acabada, seja por ser assim mesmo ou por falta de recursos, soa legal. As vezes a ideia se sobressai. E isso no fim é o que importa. Nesse sentido você trabalha com o que tem e recebe elogios.
Se eu recebesse dinheiro público, edital, algo do tipo, minha música me levaria até pro inferno. Brincadeira, mas se eu tivesse grana mesmo pra gravar mas condições que o bicho “Indústria” existe, eu ficaria devendo pouca coisa pros grandes nomes. Parece até arrogante, prepotente falar assim, mas nem é (risos). Não me vejo assim, falo mais mesmo pela facilidade de explorar muitas coisas, ritmos, lírica, etc.
A gente tem muitos caminhos. Se a gente olhar o poder econômico em torno do sertanejo, inclusive com compra de espaços, é algo incomparável. Então a maioria vive do faça você mesmo. E isso é ótimo. Nesse sentido como você pensa os dias a seguir após o lançamento do disco. Em termos de shows e etc.
Às vezes a gente se engana muito, ou não percebe o que move a engrenagem das coisas. Mas tudo é dinheiro. Mesmo o artista mais hypado, viralizado nas redes organicamente, se não aparecer um empresário pra pôr a mão, ele morre na praia. O Brasil é o segundo maior exportador de carne do mundo. Nosso agro também é muito forte e isso vai se refletir em vários segmentos como a música, potencializando o sertanejo, por exemplo. Mas esse é outro papo (risos). Os shows são super importantes nesse pós-lançamento, mas não sei se vou conseguir circular, ainda está tudo muito turvo nessa saída de pandemia, com relação à música. De modo que se aparecer oportunidade, a gente vai pra cima, se não, vou me manter focado em produção, estúdio, tentar editais para uma mini-tour e seguir com outros trabalhos.
Você privilegiou artistas locais pra participar do disco o que evidência a variedade de nomes a serem conhecidos. Para finalizar, quem você pode apontar como um talento a ser descoberto por mais público?
Wirk começou a lançar há bem pouco tempo e já tá batendo em muitas comunidades, bairros periféricos de Teresina. Ela canta de tudo, mas tem se destacado no reggae remix, que é uma cultura muito forte no Piauí e Maranhão.
E a Preta Cakau tá vindo com muito lançamento bom, investindo em clipes, produção de responsa.