Se foram 5 anos desde que o duo carioca Gorduratrans lançou paroxismos, seu segundo disco. Ele e o primeiro repertório infindável de dolorosas piadas foram crias de Felipe Aguiar (guitarra e voz) e Luiz Marinho (bateria e voz). Discos barulhentos que remetiam a relacionamentos e o dia a dia. Em zera – que você ouve após a entrevista – o barulho permanece, mas de forma mais organizada. Digamos assim. As temáticas mudam um pouco abordando o contexto geral de relações indo até a política e futebol. Que inclusive andam, infelizmente, de mãos dadas.
A gravação ocorreu no lendário El Rocha com participações de Fernando Sanches e Rodolfo Duarte. A produção do disco tem as assinaturas do produtor pernambucano Roberto Kramer (ROKR) e de Fernando Dotta (Single Parents).
Batemos um papo com Luiz Marinho sobre as músicas, letras, produção e shows.
O Inimigo – Já se foram 5 anos do último lançamento. Vocês rodaram o Brasil com um show bastante elogiado. O que fizeram esse tempo todo nesse mundo cada vez mais volátil?
Luiz Marinho: A gente tirou um tempo pra nós mesmos. O Felipe estava bem pegado com o outro trabalho dele e eu passei o ano de 2018 – lançamos o nosso segundo disco, paroxismos, em 2017 – tentando me formar na faculdade, e consegui. Logo depois veio a pandemia, ficamos isolados, cada um em suas casas. Foi um período de uma certa reconexão familiar, de certa forma.
Achei o som menos barulhento, menos noise, que nos discos anteriores. Mais introspectivo. Isso foi um caminho natural, pensado, ou saiu assim com as criações?
Acredito que o som continua barulhento da mesma forma, talvez até mais. O que acontece agora é que existem alguns respiros, momentos certos. Quando precisa ser barulhento, noise, a gente eleva a pressão; depende exatamente da narrativa do disco e da história que queremos contar no zera. Então, sim, foi um caminho natural, mas pensado exatamente dessa forma. Há uma tensão que está ali o tempo inteiro, nas mais barulhentas, mas também nas mais calmas – essa tensão se apresentar de formas diferentes em casa música, contudo.
Como foi trabalhar no Estúdio El Rocha? Rolou direcionamento nas músicas?
A gravação no El Rocha foi maravilhosa. O Fernando Sanches é um puta cara, um puta profissional. Tivemos todo o suporte necessário, tudo o que a gente precisava. O Rodolfo Duarte trabalhou junto com o Fernando e correu tudo da melhor forma. Não rolou “direcionamento” nas músicas no estúdio, lá a gente gravou o que havíamos preparado antes. Ficamos por uma semana inteira no Estúdio Sítio Romã, em Araçoiaba da Serra, interior de São Paulo e lá fizemos a pré-produção do disco. É um estúdio do Lucas Theodoro, nosso amigo da E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante, onde conseguimos realizar uma imersão completa em todo o processo, no universo do disco. Lá estávamos acompanhados do Fernando Dotta, da Balaclava Records, que co-produziu o disco junto do pernambucano Roberto Kramer (ROKR) – qualquer direcionamento se deu ali, com o Fernando pessoalmente, e com o Roberto remotamente, pois ele passou a pandemia na casa dos pais em Recife.
A palavra “zera” é uma gíria com muitos significados, alguns como de vitória. Achei as letras com uma temática de perda, descontentamento. Tem essa contradição mesmo?
Interessante sua percepção de contradição. Acredito que possa ter uma janela interpretativa aberta para este sentido, sim. É um disco onde a tensão se faz presente constantemente, como eu já falei. Quando ouvimos o disco prestando atenção nos detalhes da capa, há um recado muito claro ali sendo dito. Acho que essa contradição que você diz se faz presente em momentos de forma mais clara, em outros de forma mais velada. De forma mais clara, temos a segunda faixa do disco, “enterro dos ossos”, que foi o primeiro single que lançamos, já com vídeo clipe disponível no YouTube da Balaclava Records. Pra contextualizar, preciso dizer que “Enterro dos Ossos” é uma expressão bastante popular no Rio de Janeiro que se refere ao almoço do dia seguinte à ceia de Natal, à refeição feita dos restos, aquela “festa pós-festa”, entende? São as sobras do carnaval. É aquele festejar apesar da miséria, do descaso ao qual está submetida a classe trabalhadora. É como um banquete feito de sobras. Então temos uma letra que impacta, de certa forma, sobretudo com o nosso contexto político atual, que vem acompanhada de um instrumental pra frente, uma bateria com partes dançantes no refrão; é como uma contradição direta mesmo. É uma conversa com essa grande contradição que nós, classe trabalhadora, sobretudo dentro das especificidades de um estado como o Rio de Janeiro, onde não se tem pra onde correr, comandado por milícias – institucionais, inclusive -, mas que no final das contas é o que é e você precisa viver, sobreviver e buscar algum gozo apesar de tudo. A faixa começou a ser composta em janeiro de 2020. E então temos faixas como “cortisol”, que é sobre relações trabalhistas, onde a tensão se faz presente dentro daquela massa sonora, de paredão de guitarras, em uma bateria em 6/8 um tanto repetitiva, quase como em um trampo numa linha de montagem de fábrica, por exemplo. Ali não é nem tanto a letra que traz essa sensação mais “sufocante”, mas a meu ver é o instrumental que toma as rédeas da narrativa. A temática de “perda” a qual você se refere é muito fácil de entender se olharmos para o conjunto da obra, sonoro e virtual e olharmos o contexto político do país desde 2018.
Arão fala, também, sobre futebol e coincidentemente tem o nome de um jogador do Flamengo. A letra em determinado momento fala em a camisa jogar sozinha. Como vocês avaliam a ligação que muitas vezes dirigentes tem com governos e torcedores fascistas?
A faixa “arão” fala também sobre futebol, é uma alegoria. E não é coincidência, não. O “arão” que dá nome à canção vem de William Arão mesmo, volante. Como eu disse, vivemos um contexto político muito difícil e complicado desde 2018 com a eleição de um governo fascista que tem essas relações promíscuas com líderes neopentecostais, bancadas e mais bancadas, a do boi, a da bala, ou todas juntas em uma coisa só. Não se engane, trata-se de uma canção política, pois o disco inteiro o é. A gente percebe esse fenômeno de dirigentes de alguns times de futebol flertando com esses caras, o problema do Brasil sempre foi homens velhos “conservadores”. Quando falamos sobre a camisa jogar sozinha, estamos citando trecho de um texto de Nelson Rodrigues, trata-se de uma citação ali. Independentemente de gestões e de cartolas, jogadores ou fases boas ou ruins, no final das contas o que vale é o amor e comprometimento pela camisa, pela bandeira (causa?) e, no caso do Flamengo, conseguimos jogar com o lance das cores. O que uma camisa ou bandeira vermelha e preta representa no contexto atual para aqueles que lutam em prol da classe trabalhadora, a favor da real democracia e contra o fascismo descarado que tenta tomar de assalto o nosso Brasil?
Para finalizar fala como foram os shows de lançamento. Muita energia? Estavam nervosos?
Bicho, os shows de lançamento foram especiais demais, não temos palavras pro nosso público. Ver rostos que conhecemos desde 2015 colando junto com pessoas que foram conhecendo nosso trabalho ao longo do tempo. Ver gente mais novinha e gente mais velha que conheceram o “repertório infindável…” bem depois do lançamento e ouvir os relatos no pós-show sobre como as nossas músicas as tocaram de uma forma especial é algo indescritível. É aquele papo, né… A música, a arte, como potência, faísca, movimento. O primeiro show de lançamento foi no Sesc Belenzinho e foi animal. O segundo foi na Audio Rebel, no Rio de Janeiro, no último dia 2. Esgotamos os ingressos e abrimos outra sessão, que esgotou também. Foram dois shows seguidos e ambos foram muito especiais, estamos muito felizes. O terceiro show de lançamento vai ser no sábado que vem, dia 9 de julho em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense e estamos pilhados pra ver como vai fluir. Esses primeiros 3 shows de lançamentos foram pensados nesses lugares em especial por conta do nosso vínculo: em SP é onde está a imensa maioria das pessoas que acompanham nosso trabalho, a Audio Rebel é onde, provavelmente, tocamos por mais vezes na nossa carreira, inclusive o nosso show de estreia foi lá, há 7 anos. E o terceiro show será na Baixada Fluminense, que é onde eu, Luiz, nasci e cresci e onde a gente começou o projeto gorduratrans, foi aqui no meu quarto onde gravamos o “repertório infindável…” do jeito que dava pra fazer no momento e onde gravamos parte do “paroxismos” também. Então esses primeiros shows de lançamento, além de tudo, são especiais pelo valor simbólico mesmo.
Ouça zera abaixo.