Nos anos 90 era comum pra audiência americana ligar a televisão e topar com uma sitcom ambientada na casa de uma família negra. Do fundamental Fresh Prince of Bel-Air aos programas de Bill Cosby, passando por The Parkers ou Family Matters, o cotidiano fictício de famílias negras ocupava boa fatia do showbusiness daquele tempo, retratado num misto de comédia de erros com tiradinhas pensadas à forma do gosto americano. De lá para cá, outras famílias negras ocupam o mainstream de forma diversa (ou em contrapelo àquela forma), após décadas de persistentes problemas estruturais, um presidente negro, Black Lives Matter, Donald Trump no poder, super-heroi negro nas telas, Kanye West em casamento e divórcio com Kim Kardashian e milhares de acontecimentos que revolvem o lugar dos móveis na sala de uma família negra americana.

Em 2022, um Kendrick Lamar bem mais família retorna de cinco anos em quase reclusão, salvo participações pontuais, como na curadoria da trilha de Pantera Negra, com Mr Morales & The Big Steppers, em cuja capa aparece com uma coroa de espinhos na cabeça, uma criança no colo, arma embainhada na cintura, de frente a uma mulher negra que amamenta uma criança. De 2017 pra cá, houve #MeToo, Covid-19, quarentenas, a morte de George Floyd, protestos contra os excessos policiais e muita bomba nas ruas. Kendrick Lamar viu isso tudo e agora fala em primeira pessoa sobre tudo o que viu, diante da montanha de destroços que se amontoam por dentro da casa.
O Kendrick que está de volta ressurge com um disco duplo, numa verdadeira torrente confessional e reflexiva que serve de síntese a tudo que o rapper faz até aqui. Entre demônios próprios e alheios, flutuando no espaço público, o disco saiu intencionalmente numa sexta-feira 13, contrastando com as diversas menções cristãs espalhadas por todo lado. ‘United in Grief’,a faixa de abertura, é uma dessas peça-chave que oferecem a engrenagem para pensar em retrospecto toda a obra de Kendrick: enquanto em good kid m.a.a.d city a busca era por dinheiro, fama e espaço, aqui já há uns Mercedes na garagem, um Pulitzer nas mãos e muitos louros coroando sua cabeça (a despeito da outra coroa de espinhos), mas há também um luto que se estende para além de qualquer tapete vermelho debaixo dos seus tênis.
O que Kendrick pensa sobre a fama tem a forma de uma radiografia que o faz dizer “I grieve different’ (ainda que depois uma voz ao fundo diga “everybody grieve different”). Com piano de Duval Timothy, Kendrick sampleia James Blake e canta como o peregrino convertido em sábio das histórias bíblicas: atravessa um mar de mortos, passando por sobre anos de mudanças na vida coletiva (voando por cima de tudo tal qual o anjo da história do Walter Benjamin) e dirige um canhão de luz para a própria cabeça. Ao falar de si, o que Kendrick fala em verdade é de todos ou qualquer um: o que há para Kendrick falar atravessa a própria experiência do debate público nos últimos anos: os limites da exposição pública, a relação com a tia que fez transição de gênero, as questões sobre as crises da masculinidade, as crises psicológicas, o ego, o dinheiro e principalmente a fama são tratados numa gama vasta de flows e entonações que atravessam as características de cada disco do rapper.
Famoso pelo storytelling caudaloso e suas entonações distintas (do falsete à reza sussurrante), em Mr Morales Kendrick abre sua carta de vozes e berra, sussurra, cadencia o canto, como em ‘Count me Out’, ou briga e grita, como na já antológica ‘We Cry Together’, em que simula uma briga de casal com Taylour Paige (em referência às discussões violentas de Tupac Shakur e Janet Jackson no filme ‘Poetic Justice’). As várias formas de suspender ou retrair a voz põe em performance sutilmente a própria identidade de Kendrick, sua singularidade e sua diferença, e emolduram a auto-representação do rapper – as várias entonações apresentam uma versão de si distintas, que ao longo do disco se intercambiam.
Embaralhando essas diversas expressões do próprio flow, Kendrick usa o monólogo, o diário, o discurso teatral (como em “N95”) e recolhe de seus colaboradores aquilo que ecoa em sua identidade, no exato ponto em que ele não pode chegar (como na relação terapêutica, onde o analista sublinha o ponto onde o analisado não consegue acessar). Quando convida Beth Gibbons, em rara aparição sem o Portishead, Kendrick a coloca como uma voz materna e inconsciente pousando nas tramas de ‘Mother I Sober’. Quando põe em cena Sampha, faz o cantor inglês soar como contraponto às questões de Kendrick sobre a própria masculinidade e sobre a própria maturidade. Quando convoca Ghostface Killah e Summer Walker, entrega o hit de r&b “Purple Hearts”, cheio de fúria e groove, em que canta sem rodeios que “A nigga still gon’ be a nigga, emoji heart, my family pictures / Two-steppin’ away from rappers, / I don’t trust their true intentions”.
Mas embora esteja no topo e falando a partir da visão que se oferta desse topo, o Kendrick de Mr Morales & The Big Steppers parece um pouco atrás daquele que produzia revoluções formais nos seus discos anteriores (distinto do enfant terrible de good kid maad city, do maior rapper de sua geração em To Pimp a Butterfly e do artista soturno de DAMN). Talvez não seja mais preciso inventar ou girar a roda: talvez analisar o mundo à volta, reler o próprio diário, trazer pra casa o microfone, ou cantar baixo pra não inquietar a vizinhança seja mais significativo. Chamar para dentro de casa a audiência, invocar todos os cantos da casa, apresentar a foto da família emoldurada por um emoji de coração gigante. Cantar furiosamente dentro de casa sobre uma mudança de gênero, como em ‘Aunt Diaries’, que começa sussurrante e termina numa crescendo triunfal dos arranjos junto à voz de Kendrick. Talvez falar sobre um livro de auto-ajuda, sobre sua terapia em ‘Rich Spirit’. Contar histórias de dentro de casa, sem piadinha ou tirada espirituosa. Cantar mais uma vez sozinho em casa.