Caio Padilha começou sua carreira como compositor em 2009. É ator, tem a música como berço familiar e é cientista social. Ministra oficinas de rabeca e já foi solista da Orquestra Sinfônica da UFRN. Além de vários discos na bagagem, Caio tem como experiência passagens pela Europa, EUA e Oriente Médio. E, claro, o Brasil. E aqui é que ele se debruça sobre a produção da rabeca e sua história.
Durante a pandemia Caio começou uma série de lives que continua até hoje. São entrevistas que contam a história da rabeca não só aqui, mas na América Latina e também na Europa. Tendo como característica a adaptação do instrumento a personalidade do músico.
Batemos um papo com Caio Padilha sobre a produção do doc Memória da Rabeca Brasileira, que você pode assistir após a entrevista. Vale a pena conhecer o canal de Caio.
O Inimigo – Caio, como surgiu a ideia do doc? Vi que foram várias lives transformadas em doc. A ideia inicial era essa?
Caio Padilha – A pandemia fez com que eu produzisse mais audiovisual. Tanto saiu esse doc em parceria com Marcuse de França, da Aláfia Filmes, como saiu também o Rabeca da Liberdade, com Geraldo Maia. Foi bem produtivo, mas não era a ideia inicial. A ideia eram lives de entrevistas pelo Youtube, ideia que já completou 2 anos de entrevistas ininterruptas. Com a Lei Aldir Blanc surgiu a ideia de fazer um compacto da primeira temporada. E depois o curta Rabeca da Liberdade, sobre Fabião das Queimadas, rabequeiro do Rio Grande do Norte.
A minha impressão é de que a rabeca é associada a algo inferior ao violino . Há isso mesmo?
O século 20 produziu uma hierarquização entre violino e rabeca, em que o violino é colocado como instrumento hegemônico, dominante e existem razões históricas da colonização. Questões da nossa formação política e cultural, que produzem essa hierarquização dos instrumentos em geral. É como se o piano e o violino fossem instrumentos representantes dessa ideia que eu correlaciono com a que certa geração tinha de que os vestibulares prestigiosos eram medicina, direito e engenharia. Os instrumentos representantes da nobreza e outros do povo, do folclore, que geralmente é marginalizada. Mas essa assimetria de poder e valor, moral, musical, está cada vez mais em xeque. Essa discussão teve seu ápice na década de 70 com o movimento Armorial, em que o Ariano Suassuna trouxe esse debate, queria fazer seus grupos representantes com a rabeca no lugar do violino. Mas os próprios violinistas tinhas uma resistência a isso. É um debate bem interessante que hoje em dia já está bem mais em xeque essa hierarquização. Hoje em dia já tem violinistas de alto nível abordando a rabeca sem preconceito, explorando seu repertório.
Temos aqui e no Nordeste todo muitos rabequerios conhecidos. Mas no doc mostra que o instrumento vai muito além do uso no Nordeste, chegando ao Sudeste e ao Sul. A cultura do instrumento existe no Brasil todo? Chega ao Norte?
Esse foi um dos objetivos da série, ampliar o olhar sobre o instrumento que por muitos é considerado como um instrumento localizado, no litoral ou interior do Nordeste, de perímetro restrito. A série mostrou que [a rabeca] se irradia pelo Brasil inteiro, inclusive o Norte. No Pará, na cidade de Bragana, tem a rabeca de Bragança. Percebemos que existia entre povos indígenas a presença da rabeca que eles chamam de ravé. Tem até um episódio só sobre o ravé entre os Guarani. Tem também a cultura fandangueira do Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraty… É uma cultura ampla que tentamos ampliar ainda mais na segunda temporada. Em 2021 falamos com pessoas da América Latina: Colômbia, México. Também de Portugal, a rabeca chuleira. O grande barato dessa série foi ampliar não só o alcance geográfico, mas também ampliar os temas de relação. Falar de cinema, da rabeca no teatro, ampliar o escopo.
Uma coisa que achei interessante no doc foi que em determinado trecho se diz que a rabeca se toca de forma “arranhada”. Seria a principal característica do instrumento, que leva a um uso mais livre e adaptado ao rabequeiro?
Esse tema do som também é muito interessante, a gente percebe ao longo das décadas a construção da escuta. Então os instrumentos produzem além do som, maneiras de serem escutados. Isso tem a ver com ideologia, com a hierarquização que falamos. Então dentro dessas características, nossa escuta também foi colonizada. Então quando vamos descrever o som dos instrumentos deixamos transparecer padrões culturais interiorizados. Uma das imposições é essa: que a rabeca é mais arranhada e o violino, mais polido. E tem outras metáforas que dividem entre popular e erudito, moderno e tradicional, urbano e rural. Essas dualidades causam efeito na nossa escuta. Então a gente associa rapidamente ao rasgado, crespo, arranhado, fanho… Uma porção de adjetivos que se opõe ao violino. Mas hoje já existe uma consideração crítica por esse senso comum da ideia de som. Quanto à maneira de construir e tocar, realmente, é mais livre porque a rabeca em determinado momento saiu dos institutos de música, dos padrões pedagógicos. Então quando os países construíram suas escolas de música fizeram com que o violino ficasse mais nesse padrão e como a rabeca ficou fora desse processo, ficou mais numa transmissão oral de conhecimento, ela mais diversa e plural. Cada mestre constrói sua rabeca com seus conhecimentos e métodos disponíveis, também afina e toca com suas peculiaridades, necessidades de cada folguedo, de cada brincadeira, repertório. Por isso essa riqueza avassaladora da rabeca no Brasil e mundo. A colonização ibérica fez isso.
Qual a importância de Fabião das Queimadas para a rabeca?
É o rabequeiro da cultura de rabeca no RN e diria até no Brasil. Porque foi um rabequeiro do século 19, que logo nos primeiros anos do século 20 teve uma atenção de Câmara Cascudo. Pelo seu repertório, principalmente pelos romances, sua cantoria, a peculiaridade da sua biografia onde era o único cantador de sua época que usava a rabeca ao invés da viola. Peculiaridades políticas também, era um negro escravizado, filho de uma escrava, que teve uma importância muito grande em criar esse arquétipo do rabequeiro cantador. E comprou sua alforria tocando rabeca, também da sua mãe e sobrinha com quem se casou. Uma figura emblemática que se tornou um patrono da rabeca e personagem central de nossa série. Hoje eu continuo pesquisando sobre ele. Meu trabalho de mestrado em antropologia é transversal, são esses temas. Mas tem outros rabequeiros no RN importantes também. Um deles é o Geraldo Idalino, que eu estou doido pra fazer uma homenagem, ele faria 80 anos em novembro desse ano se fosse vivo. Se radicou em Campina Grande e ele tem um disco, disponível no Youtube, que completa 40 anos. O disco se chama Um Violino no Forró, é o primeiro disco de forró de rabeca do Brasil, gravado pela Copacabana Discos no Rio de Janeiro. Quero fazer um remake desse disco, mas estou parado na questão financeira tentando conseguir recursos pra essa homenagem. São coisas que ficam invisíveis e merecem nossa atenção. Temos construtores de rabeca também aqui no RN, outros rabequeiros que aparecem também na série. Mas não sou bairrista não, nesse mês a gente está falando sobre as rabecas do Ceará. Especialmente com Gilmar de Carvalho que mapeou 184 rabequeiros pelo sertão. Lugares de difícil acesso e ele fez dois livros importantes. Ele faleceu durante a pandemia e estamos homenageando. São sete episódios sobre rabequeiros e luthiers.