Quem ouvir com vontade Íngreme, disco que o Oruã soltou ano passado, arrisca viver um momento meio padre dos balões: o chão pega distância dos pés e revela um desenho feito na terra, até então oculto. Indie rock dadaísta de linguagem fraturada, de canções sem refrão e intervalos jazzísticos, de vozes, cantos e pontos de outras épocas soltos no espaço entre uma faixa e a próxima. Dá pra dizer que é um daqueles discos raros, que traçam uma linha entre antes e depois em uma discografia. Para o Oruã, é um salto à frente que talvez ainda demore muito a aterrissar. Mas é também um gesto de reconexão com o início, com a volta de antigos integrantes e de um modo de compor e tocar que remete às primeiras formações da banda.
Rascunhado durante a turnê do Oruã com o Built to Spill e finalizado perto do mar em Búzios, Rio de Janeiro, Íngreme é um curva ascendente na trajetória do grupo, mas que de certa forma já estava no horizonte. Quem quiser pode ouvir a abordagem mais expansiva sugerida no EP Tudo Posso (“Cruz das Almas BA” em especial), e em “Volte Consciente”, do disco anterior, Romã (2019), e intuir que já havia alguma semente plantada ali. O certo é que esse movimento não teria dado onde deu se não fosse a reconfiguração do ex-trio em quinteto, com Lê Almeida (guitarra, voz, teclas), Daniel Duarte (bateria), Karin Santa Rosa (bateria), João Casaes (synths e arranjos) e Bigú Medina (baixo e segunda voz). A formação com duas baterias, aliás, é um retorno aos primeiros dias do Oruã, que já contava com Daniel. A entrada de Karin, João e Bigú também foi natural, já que todos haviam colaborado com a banda de algum modo, seja tocando nos discos ou na estrada.
Dias antes do primeiro show com a formação nova, Lê e Bigú trocaram uma ideia com a gente e falaram sobre a nova formação, a influência do clima praiano na sonoridade do álbum, e a expectativa de tocar ao vivo (uma ideia que na época da entrevista parecia mais segura do que agora, com a explosão da variante ômicron no país).
Na sequência, confira o papo e ouça Íngreme via Bandcamp.
Pra começar, quem integra o Oruã hoje? Vi que teve gente que saiu, gente que chegou, gente que voltou. Como essas mudanças e movimentos apontaram o caminho do disco?
Lê Almeida: Daniel que tocava na fase do primeiro disco voltou, Karin que já tinha viajado em algumas tours de carro com a gente passou a fazer parte da banda. João e Bigú já eram colaboradores nos discos do Oruã. Essa junção foi natural. Passamos o carnaval de 2020 pré-pandemia praticando uma série de novas faixas e convivendo juntos. O som foi se lapidando depois que fomos morar em Búzios.
Bigú, como foi a chegada na banda nessa fase atual? Que bagagam você trouxe pro disco?
Bigú: Eu já colaborava com a banda na primeira formação. Entrei DE VEZ após a saída do João Luiz (baixo) e do Phill (bateria). Lê me fez o convite pra tocar no baixo e topei na hora, pois já tinha experiência de tocar no projeto solo dele, mas como é uma outra onda sonora, passei pela fase de adaptação, que só me fez crescer como músico.

Li que o disco começou com algumas ideias do Lê ainda durante a turnê da banda com o Built to Spill. Primeiro, conta um pouco que chaves viraram pra você como músico e também pra banda durante essa tour. Depois, como foi traduzir esses rascunhos para o grupo?
Lê Almeida: Acho que aprendi um tanto de coisas no entorno de se montar um show, tocar ao vivo. Minha noção de tempo em relação a um set ao vivo hoje em dia é bem mais apurado. Durante uma parte da tour com o BTS nos EUA a gente costumava ficar em AirBnb, numas ocasiões dessa eu sempre gravava algo, pra depois trabalhar em cima. Foi nessa época que comecei a usar o notebook que facilitava o meu esquema ser montado em qualquer lugar. Algumas faixas do Íngreme saíram dessas gravações. O piano de “Aluanda” estava numa dessas casas que ficávamos e a bateria gravei no estúdio onde o BTS ensaiava em Boise, meio que aprimorando o sistema que usei depois pra gravar o novo álbum do BTS.
Queria que vocês comentassem também a escolha por gravar o disco no litoral, em Búzios. Íngreme não é um disco que me remete à praia (como o Todas as Brisas, por exemplo), mas tem um toque contemplativo que talvez não pudesse surgir dessa forma na cidade. A mudança de cenário também teve um papel na sonoridade do disco?
Lê Almeida: Esse disco não sairia assim na cidade grande, certamente. Em Búzios criamos um ritmo um pouco mais sossegado, acho que esse foi um certo norte. Mudamos pra Búzios a princípio para mixar o novo do BTS e aproveitar as brechas pra ensaiar e gravar com Oruã, foi perfeito, muitas coisas se encaixaram para além do som.
Bigú: Foi uma escolha muito boa! E acho que pela primeira vez, tivemos a chance de todos os dias mergulhar de corpo e alma na criação dessa onda sonora do Íngreme, como também nas diversas praias da região, o balanço e a agitação do mar nos inspirava novos ritmos.
Eu tenho a impressão de que o Oruã tem também uma função catártica, como se além de uma banda fosse também uma forma de reação direta a esse abismo que se abre sob nossos pés todos os dias. Não uma reação pela via da agressividade, mas algo mais espiritual, medicinal. Pensando nisso, noto também que a espiritualidade aparece cada vez mais no nome das faixas e dos discos. Como esse tema existe dentro do Oruã?
Lê Almeida: Eu particularmente passei a dar mais atenção para algumas questões, principalmente sobre o que a gente mentaliza em termos de um mundo melhor para nós e para os outros. Eu gosto da sensação de cantar algo que me deixa motivado, me leva pra cima. Eu hoje penso um pouco com mais cuidado sobre o que vou cantar numa letra. Acho que morar em Búzios ajudou a entender com mais tranquilidade e paz algumas coisas e me fez direcionar melhor minhas ideias de música e arte.
Lê, acho que ainda na época do primeiro disco, vi uma entrevista em que você comentava que a ideia inicial da banda era tentar unir krautrock com Luiz Gonzaga. E a descrição atual do Bandcamp de vocês define o som, entre outras coisas, como “jazz de pobre” e “krautrock da classe trabalhadora”. O Oruã de 2021 está mais perto daquela ideia original? Ou o norte agora é outro?
Lê Almeida: O norte é outro, mas certamente essa essência do início vive forte em mim. Nesse momento acho que respiro mais um tipo de música que possa ser dançante e alto astral mas que tenha de fato um sentido na escrita, uma intenção por trás do balanço. O Íngreme é um tanto disso.
Vi que outro dia rolou um show já com a formação atual na porta do Escritório, e até a entrevista sair devem ter rolado outros. Como tem sido tocar o Íngreme ao vivo?
Lê Almeida: A gente vai fazer amanhã o primeiro show depois de ter lançado o Íngreme. Eu acho interessante demais, que é dai que você saca o envolvimento ao vivo das pessoas com o disco e a banda. Tocar as faixas do disco tem sido muito divertido pois a forma como gravamos é meio embaralhada de elementos e vibrações. Ao vivo a gente organiza melhor pra se tornar um show bem executado.
Bigú: Tem sido demais! Após meses ensaiando e se preparando pra quando os shows voltassem a acontecer, tem rolado uma certa ansiedade, mas que passa assim que começa o show. Daí é só diversão.