Depois de 2020, nada parecia mais possível se não o apocalipse no horizonte. 2021 confirmou essa predição pois dobrou a aposta: enquanto o mundo parecia ruir inevitavelmente no anterior, em 2021 parecia mesmo que não escaparíamos do buraco a dado momento. No entanto, estamos nós cá vivos, vivão e vivendo, diante do abismo, acompanhados de discos que parecem nos salvar do buraco iminente (e outros que nos empurram pra ele sem pensar duas vezes). Do rock sujo ao dark folk, do baile funk ao pop de pistas, aqui vão dez apenas dentre os notórios discos desse ano (que foi pródigo em bons lançamentos, diga-se).

Mo Troper – Dilettante
(Bandcamp / Spotify)
O esquisito Mo Troper passou os últimos anos tentando lapidar um formato consolidado na caixa do POWER POP que constantemente se confunde com o lo-fi ou o garage (principalmente por soar como verdadeiros arquitetos do rockinho sujo que constantemente ultrapassa a barreira que o distingue do rock ~limpo, como Robert Pollard ou Ty Segall). Anos atrás Troper tentou reencenar Revolver, dos Beatles, e agora surge com as 28 faixas de Dilettante muito embriagado pelas frequências dilapidadas das canções de Lennon & McCartney, mas também ecoando influências díspares que vão de Fountains of Wayne e Daniel Johnston a Dinosaur Jr. (inclui solos massivos à la J. Mascis que automaticamente dão vontade no ouvinte de meter um boné, subir no skate e meter-se ladeira abaixo). Pérolas como ‘American Dad’, ‘Perfect Song’ e a baladinha ‘Better Than Nothing’ são alguns dos momentos mais singelos de 2021.

Don L – Roteiro para Aïnouz (Vol. 2)
(Spotify / YouTube)
Depois de seu trabalho seminal no Costa a Costa, onde foi gangsta, driller e trapper muito antes disso ser moda no país (e por isso deve se dar todo crédito aos arroubos egoicos que ele solta no Twitter), o cearense Don L conquistou fãs da nova geração com seu discurso afiado e seu quinhão importante no chamado ANO LÍRICO (o já distante 2017) com o terceiro (e primeiro, pois em ordem decrescente), Roteiro para Aïnouz. A expectativa pro segundo (e segundo mesmo, na ordem decrescente) exemplar da trilogia vinha sendo criada ano após ano e no final de 2021 finalmente foi conflagrada: despistando rastros que estavam deixados no disco anterior, aqui a influência da fase cristã de Kanye West e a modulação aguda dos discursos radicais de esquerda formam um arsenal poético e dramático sobre luta de classes, tomada de poder, organização das massas e a ‘volta da vitória’, entremeada por referências aos clássicos fundamentais do rap brasileiro (como a menção direta à faixa de Xis, ‘Os manos e as minas’). Don L entregou hits e temas pra pensadores de esquerda, surgindo aqui e ali ensaios importantes sobre o papel agregador desse disco. Seriam essas as credenciais suficientes pra chamar de CLÁSSICO INSTANTÂNEO??

Marissa Nadler – The Path of the Clouds
Desde 2004 transitando entre o folk mais gótico, o FREAK FOLK e o soft-rock, Marissa Nadler chega à plenitude do seu lirismo dark e de sua produção com esse The Path of the Clouds. Composto durante o isolamento pandêmico, Marissa se encarregou de produzir todas as faixas, com auxílio de musicistas do calibre da harpista e multi-instrumentista Mary Lattimore e da talentosa Emma Ruth Rundle (que participa de muitas faixas e por coincidência lançou um disco quase-irmão desse Path of the Clouds, transpassado pelos mesmos temas e texturas), e aqui não transparece pudor algum em fazer as mais brutais MURDER BALLADS das últimas décadas. Entre as historietas de terror e as produções arrojadas que soam como uma Dolly Parton perdida num pesadelo, Marissa consegue dar um novo frescor à sua própria sonoridade, explorando ainda mais seu potencial lírico e criando melodias bonitas (ainda que povoadas de papos de true crime).

Emma Ruth Rundle – Engine of Hell
(Bandcamp / Spotify)
Seguindo a sombra de sua parceira de composição Marissa Nadler, Emma Ruth Rundle soa mais críptica e tenebrosa em seu quinto disco. Tateando entre o misticismo à la Kate Bush e a lírica de Patti Smith, Emma Ruth passa do intimismo ao conto fantasmagórico, soando próxima até mesmo à Joanna Newsom de ‘Have One On Me’, como na faixa de abertura, ‘Return’. O mistério lírico se instala em faixas estranhas como ‘Blooms of Oblivion’, uma verdadeira FANFIC bíblica, com um Judas viciado, ou na história de Lázaro recontada em ‘Razor’s Edge’. Junto com Path of the Clouds, de Marissa Nadler, temos aqui a dupla de terror do folk em 2021.

TAXIDERMIA – OUTRO VOLUME
Jadsa Castro foi uma das grandes figuras na música brasileira em 2021: lançou um dos novos clássicos contemporâneos dessa nova década, seu disco Olho de Vidro, onde atualiza e dialoga com a obra de Itamar Assumpção, ao mesmo tempo em que investe sobre um dream pop swingado brasileiro. E além disso ainda trouxe uma parceria tortíssima com o músico João Milet Meirelles, conterrâneo da artista baiana que tocou com Baiana System e diversos outros. Em ‘OUTRO VOLUME’, EP com 5 faixas mergulhadas no dub e nos graves de baixo e bateria que ultrapassam os limites da Jamaica e chegam até a um tipo de krautrock, o duo Taxidermia inscreve-se num campo aberto onde a poesia meio cubista de Jadsa se mistura aos tempos quebrados dos beats de Meirelles, formando uma colagem PUNK de reggaes e dubs. A bela voz da cantora baiana aparece aqui sob uma pegada diferente de ‘Olho de Vidro’, inclusive de modo complementar ao disco, onde faixas como ‘Aguenta’ e ‘Lava’ funcionam como improvisos de spoken word e ampliam a cartilha do balanço de Jadsa.

Bebé – Bebé
A paulistana Bebé tem apenas 17 anos mas já tem uma carreira de cantora com alguma extensão: anos atrás participou de um The Voice Kids e já produz ao lado de nomes como Sérgio Machado Plim, baterista e arranjador conhecido por seu trabalho junto a Tulipa Ruiz, Criolo, Emicida, Metá Metá e outros projetos. Em seu disco de estreia, Bebé transita pelo R&B à la Little Simz, como em ‘Antes da Meia Noite’, ou o pop tropicalista meio Céu, como em ‘Saltos de Realidade’. Mas é com a estranheza rítmica de ‘O Sol’ e ‘Bipolada’ que a cantora leva além os limites de suas próprias influências: em ambas as faixas o minimalismo do arranjo, orgânico passando por filtros eletrônicos vários, ganham a dimensão de um pop entortado, vergado pelas letras confessionais que emolduram o canto soul límpido de Bebé. Talvez esteja aqui a representante brasileira mais singular a caber na mesma prateleira de FKA Twigs, Kelela e Tirzah.

Mariá Portugal – EROSÃO
(Bandcamp / Spotify)
Mariá Portugal tocou bateria por mais de 20 anos com diversos nomes da música brasileira: de Arrigo Barnabé a Fernanda Takai, de Maria Beraldo a Metá Metá (inclusive na mágica participação do Metá Metá no Festival Dosol de 2018, com o mar às costas do palco onde a banda tocava, era Mariá quem dava o ritmo naquela noite). Nos últimos anos a baterista e compositora tem morado em Duisburg, na Alemanha, onde estuda academicamente bateria e percussão e participa de improvisos com instrumentos orgânicos e eletrônicos simultaneamente. É com essa base musical alimentada por anos de experiências diversas que Mariá lança EROSÃO, seu disco de estreia eivado de músicas com sons da cidade, cantando em grande parte do disco, onde rende versos bonitos do quilate de ‘O grão da voz / matéria prima / da praia da memória’ (na faixa “O grão da voz”, feita para Juçara Marçal). O disco passeia pelo ambient, pelo free jazz, e pelo avant-garde paulistano que coaduna com os discos de Kiko Dinucci, Maria Beraldo, e do próprio Quartabê (grupo do qual Mariá também faz parte), e a soma final gera uma crônica, uma pequena ópera sobre a cidade, com sua poesia concreta, sua lírica cinza e erodida.

Godspeed You! Black Emperor – G_d’s Pee AT STATES END! –
(Bandcamp / Spotify)
2021 foi um ano de renascimento pros grandes do post-rock. O Mogwai e o Godspeed You! Black Emperor lançaram discos e para além do lançamento, os discos além de tudo eram bons. Nesse novo disco do GY!BE, os sintomas políticos dão vazão a um disco de ideias e ideais radicais do grupo. As cordas, os samples que crescem junto às avalanches de guitarras e ruídos estão restaurados aqui como se fosse o ano de 2004 novamente. O apocalipse iminente pareceu dar rajadas de vigor no som do GY!BE: a faixa inicial (que pro ouvinte apressado de Spotify foi dividida em três partes com músicas distintas) de 20 minutos parece nascer do mar de angústia e desolação que tomou a vida coletiva no último ano, o que é certamente o cenário ideal para que uma música da banda canadense nasça. E é dessa semente espúria do apocalipse que o grande espírito do post-rock nasce e se manifesta. Esse novo disco é um exemplo digno.

Marina Sena – De Primeira
Meses depois do lançamento do disco, o que dizer da carreira meteórica de Marina Sena? De Taiobeiras para o mundo, a cantora já viu sua faixa “Por Supuesto” atravessar todos os rincões possíveis e impossíveis, e já sofreu ataques de hate suficientes pra derrubar sua conta no Instagram, uma suposta vingança de fãs do cantor João Gomes irados por Marina ter ganho o troféu Revelação do Prêmio Multishow. Apesar das dicotômicas reações, o saldo positivo é bem mais largo para a cantora mineira: de Anitta a Zé Vaqueiro, do fã de Rosa Neon ao fã de shoegaze, pode-se dizer que Marina Sena agrada a gregos e troianos com seus sons de estreia. Letrista criativa e compositora imparável de hits, em De Primeira Marina entrega um conjunto de canções que não perdem o frescor se você deixar o disco tocando em loop, um trabalho em conjunto com o produtor Iuri Rio Branco, que soube enxergar a vasta gama de ritmos brasileiros nessa ourivesaria harmônica. Faixas como ‘Pelejei’, ‘Cabelo’ e ‘Santo’ são pérolas pop que talvez fiquem á sombra diante dos hits poderosos que devem tocar bastante verão afora pelo Brasil (e quem sabe até fora dele).

FBC & Vhoor – Baile
O outro estouro meteórico na música brasileira depois de Marina Sena foi o revival funk lançado pelo rapper mineiro FBC junto ao produtor VHOOR. VHOOR surgiu inclusive em 2021 com diversas e ribombantes facetas: com Ritmo, seu disco de beats, apresentou uma leitura antropofágica dos ritmos brasileiros, notando aspectos centrais na sonoridade que liberam o papel agregador da batida, que organiza o rito da música como um todo. Com OUTRO ROLÊ, sua primeira parceria de cabo a rabo com FBC, embriagados pela estadia na Europa do rapper mineiro, há exercícios interessantes que já anunciavam o estudo mais detido do baile funk pela dupla: ‘Baile de Ladrão’ colocava FBC em primeiro plano como MC de bailão, onde narra uma noite numa festa de periferia. Esse espírito contagiaria os dois músicos ao longo de 2021, culminando na ópera-Miami, um raro disco conceitual, sobre a ida ao baile, as paixões e os vícios da noite, e a tomada melancólica da favela por milícias escoltadas pela polícia covarde. No meio disso tudo, há hits incontestes como ‘Se Tá Solteira’, ‘Delírios’ e ‘De Kenner’. Nessa breve epopeia, a dupla mineira iniciou um revival que deve marcar os próximos anos no rap brasileiro, que somado à estética anos 80 imprimida na música de outros rappers, como o paulista Nill, deve ditar as novas tendências.