Um leão saudando as cores do verão: a estreia da popstar Marina Sena

Foto: Sarah Leal

A primeira faixa de De Primeira começa como uma baladinha ou um minimal funk carioca tocado na guitarra, apenas com a voz de Marina Sena surgindo depois da primeira nota. Logo a impressão de que se trata de uma balada semi-Ijexá pela via do melody funk se transforma em um axé puro, eletrônico, pronto pra tocar no rádio e também nos palcos dos esperados festivais independentes pós-pandêmicos Brasil afora. É com essa liberdade rítmica que a estreia de Marina Sena, aos 24 anos, surgiu com muito burburinho e aclamação nas redes sociais, referendada por singles e hits anteriores de uma das suas bandas, a Rosa Neon, que tiveram milhões de plays nos streamings. O disco da cantora originária de Taiobeiras, pequena cidade do interior de Minas, apresenta um pop brasileiro que foi relacionado ao tom eletro-recifense de Duda Beat ou o pop latino de Kali Uchis, mas que se inscreve em uma tradição de busca por um pop autóctone que se inicia no tropicalismo (e se torna agudo com a Gal Costa a todo vapor), passa pelo axé de arena de Daniela Mercury nos anos 90,  pela recuperação de ritmos periféricos empreendida por Pabllo Vittar e Anitta, e alcança a experimentação de Luiza Lian, MC Tha ou Potyguara Bardo. Mobilizando o funk, o dancehall, o samba, o axé, o pagode, Marina Sena manipula a forma da canção passeando entre a estrutura rítmica do ijexá e do aguerê (para quem quiser sacar a mística em torno desses dois ritmos, há diversos textos e vídeos de Luiz Antonio Simas sobre a incorporação da linguagem dos tambores dentro da canção brasileira), e influências que apontam pra sua educação sonora na fronteira entre Minas Gerais e Bahia.

No disco, Marina Sena não se acanha em sensualizar (vem me engolir / passear na minha cama), em berrar e em seguida cantar suave, como se quisesse ser ouvida de perto, de se declarar ou se rebelar (pode apostar eu vou pagar de louca / e ir na porta da sua casa / cê vai gostar), falando de amores sob os auspícios de batidões variados. A busca pelo refrão, que reúne e marca os ouvintes, é a grande contribuição de Marina, talvez: devolver o trecho assobiável da canção, deixando a marca daqueles três minutos ali perpetuamente na memória.

Capa de De Primeira, estreia solo de Marina Sena.

Antes da primeira faixa ser tocada, De Primeira traz um repertório simbólico abrangente no título e na capa: o termo “de primeira” serve pra designar aquilo que é de alta qualidade, mas também designa a jogada (no futebol ou outros esportes com bola) que dispensa o domínio, o controle e a espera. Tudo duma vez só. Sob um fundo vermelho, a capa do disco traz Marina Sena seminua, usando uma faixa à la Miss, usando batom vermelho e calçando sapato prateado, posando em um palco luminoso cheio de lâmpadas brancas. Assim como nos vinis antigos, a lista das faixas está na capa marcada por um selo entre Lado A e Lado B, imitando selo de ouro de discos premiados, enquanto a contracapa traz a setlist dessa vez disposta como numa cartela de bingo. As reiteradas associações com jogos e prêmios não são gratuitas, evidentemente – o que Marina tem a entregar além de canções sobre amores e desejos é da natureza de algo que há de mais profundo na essência humana: o jogo como espaço de ludicidade, onde as regras são auto-impostas e seguem seus próprios ditames. Para o historiador Johan Huizinga, “reina dentro do jogo uma ordem específica e absoluta”. Se é desse jogo que falamos, Marina Sena soube dobrar a aposta.

Em faixas como a já citada “Me Toca” e “Pelejei”, o encontro entre sintetizadores, pagodão baiano e o axé à la Daniela Mercury apresentam a identidade de Marina que vai além da sua performance no Rosa Neon e n’A Outra Banda da Lua. Respectivamente, enquanto uma apostava em um pop tropical brasileiro, que legou às paradas ao menos um hit poperô alternativo (“Ombrim”), a outra consistia em uma espécie de rock psicodélico e regional, falando com sotaque das Geraes sobre plantas, rios e pedras pretas. Ambos os projetos davam brechas ao repertório de Marina enquanto compositora, onde ela podia ser mais reflexiva, mais irônica ou mais irreverente, em uma preparação que deságua aqui em faixas como a já citada “Me Toca”, que está a um passo do som feito no Rosa Neon, mas que aposta alto em percussões eletrônicas, ou no pagodão trap de “Pelejei”. O próprio uso do verbo pelejar soa como recuperação idiomática daqueles limites entre Bahia e Minas, numa ponte estendida por meio da célula de pagode que há nas guitarras e no beat sincopado de tamborzão. No entanto, não há marca regionalista aqui senão aquela que só pode ser reconhecida como transformadora do local em universal. Assim como Kali Uchis, que dá um verniz futurista em sua estética colombiana, Marina Sena estende esse território que se inicia nas ruas de Taiobeiras (terra natal da cantora), ao som de sertanejo e pagode baiano que tocavam nos paredões. Por falar em Kali Uchis, é inevitável notar a sua influência nos interstícios de “Por Supuesto” (não só pelo nome em espanhol – o teclado de dancehall nessa faixa é muito semelhante àqueles dos primeiros EPs da colombiana).

O jogo de investigação entabulado para se liberar um pop AUTÓCTONE está também nos artifícios dos beats de Iuri Rio Branco (produtor que já trabalhou com nomes como Jean Tassy, Fleezus e Davi Sabbag) que deu forma às canções originalmente apenas em voz e violão de Marina. A artista dava ideias que não sabia como transformar em arranjo e o produtor capturava e dava vazão ao imaginário que a cantora mineira buscava. É com essa atenção que uma faixa como “Tamborim” se destaca, um samba cheio de ginga, que ganha charme especial e malandragem na voz de Marina. Em meio à densidade eletrônica do disco até ali, um brasileiríssimo samba tocando de surpresa é um reencontro com o acaso que só um samba representa. Se estivéssemos nos anos 90 ou início dos anos 2000, essa faixa entortaria as classificações das rádios; por sorte é 2021 e a ausência de classificação põe essa faixa num guarda chuva abrangente e finalmente antropofágico o suficiente: trata-se do que há de mais puro e possível num pop nacional, essa quimera que tanto estudo e discussão necessita para ser capturada.

Outros dois aspectos importantes do disco são a prodigalidade dos refrões (a própria Marina comentou para o jornal O Globo que se a música não tiver um refrão cabuloso, ela nem começa), que transformam todas as faixas em hits potenciais, e a presença de influências jamaicanas processadas em filtros do mais atual R&B. Em músicas como “Temporal”, “Amiúde”, e “Seu Olhar”, os baixos de dub e as guitarras percussivas de reggae jamaicano dão o tom da levada. Essa influência ainda é atravessada por climas mais latinos, como na faixa final “Santo”, em que um compasso percussivo de salsa dialoga com um paredão grave tipicamente jamaicano.

É por essa capacidade de recriar e mobilizar ritmos brasileiros dentro de uma estrutura de canção que abarca o que há de mais contemporâneo, que a aposta alta de Marina, acima de tudo, é transformar-se numa nova estrela pop – sair da esquisitice, do seu timbre meio anasalado, e se dispor como novo ícone. A sua caminhada não é curta, embora apenas 24 tenham se passado, mas o tapete vermelho já está estendido diante de seus sapatos prateados. Jogo ganho.