Corisco, novo trabalho solo de Pedro Bonifrate, é um disco sobre a Terra e a terra. Também é um disco da Terra, no sentido de que mesmo quando expande os horizontes para outras constelações e se utiliza dos melhores tropos da ficção científica, o faz com os pés firmes no chão que habita, e os olhos atentos para o que há em volta.
Muitos adjetivos já foram acoplados ao trabalho de Bonifrate, solo ou na época dos Supercordas, “psicodélico”, “espacial”, “surreal” entre os mais frequentes. Corisco é tudo isso também, mas é antes um álbum telúrico, profundamente marcado por um senso de estranhamento com os arredores pós-pandemia, ainda que alguns canções datem do distante 2016. O uso comedido de loops, programações e outras recursos eletrônicos, também contribui para dar o tom orgânico, quase analógico, ao disco que contou com a mixagem preciosa do chapa de Supercordas Diogo Valentino.
Musicalmente, Corisco talvez seja o trabalho mais acessível e fluido de Bonifrate. Algumas sequências de canções, como a corda que vai de “Vênus” a “Tel Azul”, parecem organizadas como suítes pop à Abbey Road, com saídas que viram entradas, mudanças de humores e climas que se complementam. Desse pequeno disco dentro do disco, destaque para o noise que dá o tom da ótima “Corisco (Pt.1)”, meditação poética inspirada em uma tempestade que o músico viu se aproximar da janela de casa.
Nas letras, a possibilidade de outro mundos (neste mesmo mundo) e a cautela com o avanço alienante das tecnologias da informação, e dos sistemas de condicionamento e controle são temas recorrentes. Mesmo quando parece elevar o olhar para outras galáxias, Bonifrate usa o léxico futurista para falar do intenso agora, como canta no single “Casiopeia”: “Outro mundo há em gestação dentro deste que ora gira/ E você aqui, de passagem, numa nave espacial/ Pra fora do sistema”.
“Cara de Pano”, outro single do álbum que ganhou um divertido videoclipe, também toca nesse tema, sob a perspectiva do isolamento de um personagem meio fantástico (um ser da floresta, talvez?). A faixa é o o centro luminoso do álbum, a réstia de sol em relação a qual as outras canções de Corisco se organizam. Ironicamente, segundo Bonifrate, foi a única composição que teve a letra finalizada durante a pandemia.
Na metade final, há outra mini-suíte com “2040” (dos versos “Lá onde os olhos alcançam, eu sinto você /Antenas são como totens de um mundo a perder”, dos mais bonitos do álbum) e “Grande Nó”, a última um dueto com a cantora Betina Rodrigues que de lamento pop se transforma em uma jam ruidosa para celebrar a morte de um milhão de máquinas. O bucolismo elétrico de “Corisco (Pt. 2)” encaminha o álbum para sua conclusão em clima de estiagem após a tormenta.
Depois da viagem poética-temporal de Mundo Encoberto (2019), Corisco é o retorno de Bonifrate ao estranho presente, munido dos melhores truques aprendidos no passado, mas de olho na construção de novos futuros. Acessível a quem busca melodias fáceis, rico para os que gostam das entrelinhas, este é o trabalho mais bem equilibrado de Bonifrate até aqui. Não é difícil imaginá-lo sendo ouvido daqui a alguns anos como um dos primeiros discos a tentar furar a névoa densa do Brasil pandêmico, com a elegância de um espadachim e a graça de um ente da floresta.
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