Reparo é o primeiro álbum de Micha fora da banda Nã. Um disco gestado antes da pandemia, mas com a cara dos dias atuais. Dias esses que são o resultado de ações mal planejadas e correram em paralelo a feitura do disco, onde podemos ouvir esses dias atuais e que nos fazem viajar até o passado fazendo uma conexão muitas vezes óbvia: a arte, assim como a política, são fruto dos homens, seus erros e acertos.
Estamos vivendo dias, no mínimo, interessantes. Sabe-se lá o que veremos no futuro. Ou sabemos e não queremos ver. Passando a vista pelas redes sociais podemos ver novos heróis em velhos corpos carcomidos pela mão da política. As vezes dá vergonha, as vezes dá pena, as vezes desespero. Principalmente dos amigos que outrora criticavam os heróis que eram vilões. Teatral, cinematográfico? Tem isso no disco também. Basta ouvir “Deus Nos Proteja das Pessoas de Bem” e sentir a interpretação instrumental ou vocal. Dá pra visualizar o cenário.
Micha passeia muito bem pelo popular, pela sanfona, pela viola, pelo bandolim, pelas figuras de Belchior, Cátia de França, Odair José, Jards Macalé, Erasmo Carlos… São alguns que tocam aqui constantemente e me vieram a mente na audição do disco. Claro que quando falo Micha me refiro a banda que o acompanha e não é uma banda pequena. Além de Micha (composição, voz e guitarra), o álbum conta com Marco Nalesso (guitarra, viola e synth), Luis Felipe Lucena (baixo elétrico, violão e voz), Thiago Babalu (bateria), Renato Ribeiro (guitarra e xilofone), Rodrigo Ribeiro (trompete), Rafael Cirilos, (teclado e synth), Fernanda Broggi (voz), Julio Dreads (voz e teclado), Thiago Pereira (baixo acústico) e Fernando Sanches (produção musical).

Cocaína, gasolina, passagem de ônibus. Se você viveu os últimos anos do Brasil ou no Brasil sabe que as palavras são tópicos do nosso dia a dia. Seja do morro ou do Planalto Central. Seja de hoje ou dos primeiros dias dessas terras. Vivemos sempre entre o caos e as maravilhas que o Brasil nos proporciona por dar vida a um povo que acolhe ao mesmo tempo que mata. E se não mata humilha.
Pelos semáforos de qualquer avenida nós vemos o que voltamos a ser: um país de miseráveis enquanto banqueiros nadam em fortunas cada dia maiores. Por mais que “No Fundo dos Seus Olhos” fale em nascer de novo, ou em lembrança boa, o que se ouve por todo o Reparo é uma imagem cíclica de destruição e reconstrução. Morte e renascimento. São dias, e sempre foram, para nos mantermos vivos.
O toque nordestino na sonoridade do disco vem da vida de Micha na Vila Fátima, periferia de Garulhos. Bairro industrial com uma população majoritariamente nordestina e que também faz parte da família de Micha. O músico já esteve inclusive pelos estados nordestinos e mantém ligação conceitual, estética e afetiva. Paralelo a isso o pai do músico é do interior, de comunidade ribeirinha e descendente de índio. Já a mãe é da Penha, bairro onde Itamar Assunção – influência musical confessa – firmou residencia.
Tudo isso forma uma mistura intelectual, conceitual que resulta numa obra que passeia pelo urbano e pelo rural. E quando se fala em urbano, a despeito do que muitos acham do Nordeste, pode ser a vivência das ruas de São Paulo ou de Recife (onde ele já esteve e mantém amigos). Duas capitais que revelam o que há de melhor e pior por toda a obra Reparo. “O futuro é uma fresta no quarto do futuro”, frase de “Vento Verbo” que encerra o disco, diz muito sobre como enfrentamos nossos medos, que hoje são dias para muita gente.
Entre tantos momentos bonitos de Reparo eu fico com “No Fundo Dos Seus Olhos” e o trecho “eu moro no fogo que não se consome”. Que esse fogo siga ardendo durante muito tempo, nos dê força para lutar e sobreviver e queime quem merece.
Ouça Reparo via Spotify.