Envolta com o amor e o passado, Lulina diz muito sobre os dias atuais

Em janeiro saiu mais um disco de Lulina, Vida Amorosa Que Segue Vol. 1, uma parceria com Hurso Ambrifi. Fazia tempo que não ouvia nada dela e resolvi apertar o play. O disco já começa com uma pegada eletrônica forte e bateu aquela dúvida sobre o eletrônico na carreira de Lulina. Parei o disco ainda na primeira música e fui lá para 2009, para o disco Cristalina que é o primeiro “oficial” dela. Disco gravado em estúdio com todo o suporte necessário. Por que discos mesmo ela já produzia desde 2001 de forma caseira e foram 9 nesse formato. No Cristalina tem a belíssima “Nós” que nos dias de hoje cai muito bem.

O passeio foi por Pantim, palavra maravilhosamente nordestina como nós (ela é pernambucana), e por Desfaz De Conta, disco lançado em 2019 e que eu não conhecia. Uma ótima surpresa já que além da qualidade musical ele também adentra o turbilhão político-social que estávamos passando e muita gente nem imaginava que fosse chegar onde estamos. Inclusive o disco conta com um time seleto de músicos: Thomas Harres (percussões e MPC), Gabriel Bubu (baixo e guitarra), Maurício Pereira (voz e saxofone), Dudu Tsuda (sintetizadores), Guizado (trompete), Paulo Freire (viola), Igor Caracas (percussões), Maurício Tagliari (guitarra), Missionário José (sintetizador).

Capa de Vida Amorosa Que Segue Vol.1

Lulina tem uma escrita simples, de fácil identificação já que suas letras falam sobre os dias, os dias de qualquer um. Os medos, as relações, decepções, vitórias, solidão, o amor. E o amor ganhou um capítulo especial em seu disco atual, já escancarado no título. Por mais que Lulina sempre tenha escrito sobre o amor, de forma nem sempre direta, a coisa mudou de modo que até a sonoridade eletrônica que sempre esteve presente (era esse o ponto no começo do texto e findei descobrindo que o voz e violão que havia na minha cabeça era um equívoco) se tornou mais forte em Vida Amorosa Que Segue Vol. 1, que tem até uma cara de anos 80.

Por mais que Lulina possa ser uma desconhecida para muita gente, sua produção é extensa em discos de estúdio ou caseiros, ela também ataca de escritora como no Livro das Lamúrias ou em contos, crônicas, poemas e também produz vídeos massa. A artista já passou pela Europa, repaginou “Cigana” no Jeito Felindie, tributo ao Raça Negra organizado pelo Fita Bruta e tem apego ao número 13.

Para tirar a dúvida sobre a produção atual mandei algumas perguntas que ela respondeu num domingo a tarde e você lê a seguir. Clique na capa acima para ouvir Vida Amorosa Que Segue Vol. 1 . e se quiser saber mais sobre a artista tem uma entrevista junto com Stela Campos muito boa no Scream & Yell há 11 anos atrás.

O Inimigo – Pra começo de tudo – você que faz letras que são crônicas do dia a dia – como está passando esse período? Vi que lançou um disco ano passado e um recentemente. Indo além, como vão os dias?

Lulina – Tá difícil, com tudo o que tá acontecendo no país, mas seguimos. Continuo aqui no isolamento em casa. Acho que como muita gente, oscilo em dias mais cansados e tristes, e outros com mais energia pra criar e produzir. Sim, lancei o disco Desfaz de conta no finalzinho de 2019, e quando a gente tava se preparando para fazer uns shows, a pandemia começou. Acabei nem trabalhando tanto a divulgação desse disco (que pra minha alegria foi indicado ao prêmio da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte). E em 2020, milagrosamente tive vontade de compor e produzir novas canções, sobre um tema que não costumava explorar muito: o amor. E assim lançamos, eu e o meu amigo Hurso, o disco Vida amorosa que segue – vol.I em janeiro desse ano de 2021.

Quando ouvi o disco novo, que tem um pé nos anos 80 pela sonoridade, fiquei encucado que seria a primeira vez que você ia pro eletrônico. Na minha cabeça era um som lofi voz e violão/guitarra. Fazia tempo que não ouvia. Então ouvi tudo que você já gravou e o eletrônico está presente sempre. Mesmo quem em menores quantidades. Pra esse disco novo houve a intenção de soar mais anos 80? Se sim, por quê?

Verdade, o eletrônico sempre esteve presente, às vezes mais discreto em alguns beats e synths, ou mais aparente como é o caso desse último disco. A sonoridade dele é uma mistura de 70, 80 e 90. Tem inspiração nos timbres da música brasileira dos anos 70 e 80, além de um pouquinho de 90 também. A gente não tinha uma intenção clara de buscar uma sonoridade específica, começou com o Hurso me mandando umas bases que exploravam timbres mais 80, eu fazendo letras sobre relacionamentos e quando vimos estávamos falando de canções de amor. Ao assumir o tema, começamos a resgatar a sonoridade das canções românticas que mais tocavam nossos corações, desde as rádios da infância e da adolescência até hoje, com referências como Connan Mockasin e Blood Orange. A escolha pelo lance mais eletrônico veio tanto da gente curtir, quanto das dificuldades de produção numa pandemia: tudo foi gravado pelo Hurso (que é produtor) na casa dele, enquanto eu gravava as vozes em casa também.

Suas letras tem uma cara, como eu já disse, de crônicas do dia a dia. Falam de relacionamentos, acontecimentos, personagens, desejos… Esse disco novo foi – como para outros artistas – um “exercício” de pandemia?

Não foi pensado pra ser um exercício de pandemia, até foi uma surpresa a gente ter vontade de compor e produzir numa fase onde as emoções estavam tão a flor da pele, onde estamos tão imersos em notícias tristes. Mas essa ideia de criar e produzir com o Hurso já era antiga, tem música desse disco (“Joanete Clair”, por exemplo) que foi composta em 2016, a gente só aproveitou a quebra da rotina na pandemia (e a vontade de sentir uma alegria realizando algo bonito) pra resgatar essas ideias e tentar desenvolver novas canções, sem pressa e sem muita expectativa também. Talvez por isso o disco saiu tão rápido, em uns 3 meses a gente já tava com ele criado e produzido, e só aí decidimos que valia a pena mixar, masterizar e lançar como um álbum oficial aquelas canções.

Pra finalizar: tem uma música sua, “Toda Solidão”, sobre a solteirice. E nesses tempos isso tem sido a “salvação” de muita gente e o martírio de tantas outras. Qual a visão atual sobre esse ponto e sobre o filho se tornar advogado (acreditei que existia o filho rs)?

Nas minhas letras eu gosto muito de explorar pontos de vista contrários à um consenso (no disco Desfaz de Conta fiz bastante esse exercício). É muito difícil encontrar uma música que não veja a solidão como algo ruim. E eu quis mostrar que sim, ela tem um lado bom também. Acho que é muito opressor quando acreditamos só em um viés, que não deixa de ser uma construção cultural. Então explorei diferentes personagens e situações onde a solidão pode fazer bem. A música não fez sucesso financeiro a ponto de pagar a faculdade de um filho (que nem existe) advogado, mas foi uma das que mais recebi mensagens lindas de pessoas, que podem encontrar na própria canção uma companhia quando o lado triste da solidão bater.

Abaixo assista ao clipe da música “Pois É” do disco Vida Amorosa Que Segue Vol.1. Um clipe documental, sobre a rotina do casal Pedro Falcão e Ana Shiokawa durante a pandemia de covid-19 em 2020/21. Filmado, dirigido, editado e finalizado pelo próprio casal, que possui uma produtora juntos, a Moshimoshi.