Por Felipe Alecrim e Pedro Lucas
Fotos: Rafael Passos
Anos após sair de sua sede e da sua histórica Rua Chile, o Festival Dosol retorna de sua peregrinação pela praia (nos tempos de Imirá), pelo concreto (quando foi sediado no Arena das Dunas) e por outros prédios históricos (quando, pós-pandemia, se instalou no pátio da Capitania das Artes) e volta pra sua Ribeira original. Dessa vez, com programação que se estende na sede do Dosol em Potilândia durante a semana, com um dia só que ocupou casas tradicionais da Rua Chile, como o espaço Rosas na Cartola, que fez as vezes de inferninho pra bandas de stoner, metal e hardcore, o histórico Blackout/Galpão 29, aberto com seu charme GAUCHE e clássico, o Ribeira Music, antigo Armazém Hall, casa extensa que dividia os grandes shows do formato primevo do Festival Dosol com a sede original, e o palco Frisson, casa seminal do eletrônico potiguar, que apresentou nomes diversos da música eletrônica feita na cidade. No centro da rua, de frente ao porto e circundado pelo Potengi, o palco armado como na primeira edição, há 21 anos. Dessa vez, a circularidade de nomes, a ocupação do espaço e panorama da atual música brasileira, o retorno ou a continuação do rock sujo atraindo novos (ou velhos fãs), a fortificação de uma resiliente cena potiguar em andamento ou reestruturação e a força feminina nas lideranças de diversos projetos musicais deram o tom do programa.

Navegantes & Alquimistas
A abertura da noite foi especial por si só: o Ave Sangria apresentava seu repertório de clássicos e algumas novidades, com casa já cheia, com versos cantados a plenos pulmões pelo público. A produção acertou ao abrir a programação com um dos maiores, se não o maior, nome do lineup. Mantendo a pontualidade característica do festival, a banda subiu ao palco, localizado no Largo da Rua Chile, por volta das 18h. O público foi presenteado com clássicos do primeiro disco da banda e canções do trabalho mais recente, lançado em 2019.
A escolha da Ave Sangria para abrir o festival atraiu um grande público desde o início, algo incomum em edições passadas. Da formação original, Almir de Oliveira na guitarra e Marco Polo no vocal seguraram hits e novos arranjos, dessa vez com muitos solos de guitarra, com zabumba e percussões. Aqui e ali o som do microfone do vocalista Marco Polo sumia, mas nada que a plateia não conseguisse suplantar (e tão logo fosse resolvido, também). Em “Dois Navegantes”, o guitarrista Almir assumiu os vocais e cantou de modo cadenciado, com a paciência de quem navega, afinal.
Na reta final, Mombojó apresentou músicas do seu trabalho mais recente, Carne de Caju, com versões de clássicos de Alceu Valença, reservando os momentos finais para suas canções mais consagradas. A sinergia com o público foi evidente, com todos cantando e dançando.
No final da noite, a responsabilidade de fechar a programação e de se despedir, ao mesmo tempo, foi de Luisa e os Alquimistas, fazendo o último show da banda em terras potiguares. O grupo, encabeçado por Luisa Nascim, atravessou quase dez anos calibrando e construindo o seu vocabulário, batizado de brega punk, e após hits, turnês europeias e brasileiras e de fazer a trilha sonora de tantos natalenses, a banda põe um ponto final na carreira. Acompanhando Luisa, alquimistas dessa e de outras épocas subiram ao palco: além da formação atual com Pedras Leão no baixo, Carlos Tupy na guitarra e Gabriel Souto nas picapes, Walter Nazário, produtor de Vekanandra e de outros hits do grupo, e Zé Caxangá, membro original do projeto, se dividiram nas guitarras complementares. Atravessando toda a carreira da banda, houve apoteose brutal e catártica marcando o momento histórico.

Jovens inconsequentes
No palco do Galpão 292 (antigo Blackout/Galpão 29), passaram bandas como Meus Amigos Estão Velhos, com seu indie rock, o punk rock visceral da Zefirina Bomba, o crossover thrash da Black Pantera e o pós-punk da Cidade Dormitório, além da música dançante da Dusouto e o rock baiano da Tangolo Mangos. Apesar de levar um bom público, Meus Amigos Estão Velhos apresentou um show com pouca interação. Já a Zefirina Bomba, há tempos sem tocar em Natal, trouxe energia ao público, que até ensaiou rodas de pogo tímidas.
No abrir das 21h30 da noite, no palco Blackout, meio inferninho e meio arena, no calor e na escuridão dos calabouços, começam a afiar guitarras, triângulos, bongôs e baixo os baianos da Tangolo Mangos. Banda tropical e perigosa, como só há de ser o que vem da Bahia, ao vivo é como se o conjunto fosse o King Gizzard and the Lizard Wizard se passasse um mês descendo a 2 de Fevereiro no carnaval de Salvador. E não é como se fosse um reducionismo: o triunfo é ter um vocalista como Felipe Vaqueiro, que na postura parece Moraes Moreira quando gravava o Acabou Chorare, entortando versos com jogos de palavras e brincadeiras sobre a vida intempestiva, junto a momentos ácidos de pura psicodelia, com a banda inteira amassando os mais enérgicos riffs de indie rock atolados no fuzz e no wah-wah. O mais maluco é quando, com a naturalidade de uma volta em Santônio Além do Carmo, começa um baião antes de uma sequência dilatada de guitarrada. Falavam muito do show dos camaradas, com a notícia de que seria um dos melhores do Brasil atualmente, e essa nota aqui existe pra atestar que é mesmo. No outro dia o pessoal ainda tocou lá por Pipa, no que a acidez da banda deve ter ido ainda além.
Sophia Chablau e uma Enorme Perda de Tempo, outro nome importante da juventude roqueira brasileira, jogou pra torcida desde o início. Alternando entre momentos melancólicos, momentos de experimentação e profunda interlocução com a alucinação, Sophia e sua turma levaram ao palco um senhor pandeirista que conheceram na praia. Além de mostrar sua habilidade na embolada, ele acompanhou a banda em “Debaixo do Pano”, hit de Chablau e seu conjunto, que daí pra frente só solidificaram seu noise e sua sequência escalafobética de distorção e loucura noite adentro. Plateia completamente infectada pela juventude.

Prêmio Joga Fácil
Os nomes da casa mais uma vez se destacaram por estarem justamente mais em casa do que nunca: na Ribeira velha de guerra, de Dusouto a Gracinha, de Sourebel a Cami Santiz, de Luisa e os Alquimistas a Bixanu, os nomes potiguares mais uma vez mostraram que o Festival Dosol é a micareta e a confraternização de fim de ano dos grupos locais.
O Dusouto botou novamente o pessoal pra cantar antigos sucessos, a Gracinha teve coro conjunto e gritaria ao pé do palco, a Sourebel fez sua roda tradicional “ao modo da capoeira, só com gente da paz”, como disse o vocalista Memé, Cami Santiz relembrou seu primeiro show no Festival Dosol do ano passado, num movimento ascendente que saiu do sideshow pra programação principal num átimo, em pouco espaço de tempo, e as jovens revelações Ravia e Dona Liberdade mostraram suas prerrogativas de promessa futura. Outro destaque potiguar fica pra baterista Quel Soares, de Demonia, Joseph Little Drop e mais diversas bandas, que foi convidada ao palco pra assumir as baquetas do Black Pantera no meio do show do grupo mineiro e embalou uma digna roda punk só de mulheres.
No mais, dia de festa pra músicos e pra música de Natal.






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