O cânone é sempre móvel e a movimentação de um polo a outro acompanha as modificações que ocorrem no próprio mundo ao redor. Mudam as listas de melhores discos da História conforme as épocas, os jornalistas, os críticos e as redações mudam também. Mudam os nomes da moda, mudam as influências e as referências das novas bandas, músicos e cantores e cantoras. De tempos em tempos aparece um novo clássico.

No Brasil, há que se citar o papel proeminente da influência do homônimo de Arthur Verocai na música local dos últimos 10 a 15 anos. Há também os casos em que um clássico antigo se torna mais evidente: pensemos como o Clube da Esquina ganhou relevo conforme os anos foram passando. A busca pelo disco desconhecido ou esquecido que permanece atual e pouco a pouco vai influenciando novos sons – ou apenas enchendo festivais que botam bem no lineup uma banda do tipo, como foi o caso da reificação do Sparks, mais recente – é contínua, ainda bem, e calha de surgir uma pedra fundamental que antes não estava na construção do grande templo.

Parece que uma vez mais podemos vislumbrar uma pepita achada num charco invisível até então. Entre essas novidades neo-canônicas, uma pedra brilhante que tem aparecido com cada vez mais frequência em listas de grandes álbuns de nossa época é o álbum Long Season, da banda japonesa Fishmans.

Esse disco, de quase quarenta minutos de uma única faixa contínua que na verdade pode ser desmembrada em outras, parece ter sido redescoberto pelos jovens flanantes da web, imberbes de fórum do Reddit, pelos novos pesquisadores e pela crítica musical que tem se aproximado do som do Oriente (vejamos, inclusive, a quantidade de city pop que tem pairado nas rádios de Spotify e nos listening bars mundo afora).

O ápice dessa retomada do Fishmans na imprensa foi a review tardia pela Pitchfork (com nota 9.3) e o sétimo lugar entre os trezentos melhores discos de todos os tempos na lista da Paste Magazine. Uma volta pelo site Rate Your Music revela entusiasmados relatos de relações hipnóticas com Long Season, quase que diariamente desde 2023. Ainda estou tentando rastrear quem iniciou a moda, mas fato é que se estabeleceu um novo nome imponente no cânone pro presente e pro futuro. E mais, um cânone que parece avançar junto com o tempo do modo mais ligeiro possível – o disco é de 1996, maturado no Ocidente com certo vagar, entretanto.

A canonização de nomes que pareciam estrangeiros às listas de grandes discos e de sons fundamentais dos últimos quinze a vinte anos me suscitou uma curiosidade sobre os novos desejos de um público que se esgueira nas margens do mainstream, mas sempre se aproximando do seu centro (ou trazendo da margem para o fundo deste grande rio, pro meio dessa grande pedra). A impressão é que é quase uma reação a uma dinâmica que se tornou estática nos últimos anos, muito pela rapidez dos streamings, das redes sociais e das formas de compartilhamento de música que aproximam médios e grandes artistas. Tudo muito digitável no search do Spotify, tudo cômodo, a sensação de fazer uso de uma fórmula democrática, ainda que custe assinaturas e outros modelos de controle de consumo.

O que se ressaltou nos últimos tempos, entretanto, foi uma generalização da música pop em todos os âmbitos; não que fosse diferente desde sempre o impacto das produções pop e radiofônicas no cotidiano e no centro das discussões sobre música nos hebdomadários especializados. Não é bem assim: a questão é que, dadas as facilidades de distribuição e consumo, parece que uma camada pegajosa de pop se espalhou pelo tecido produtivo da música underground, também. Ou do que se convencionou chamar de underground (o que seria underground em meio a tanta superfície disponível?).

Neo-indies em procissão

Nesse cenário, cabe refletir rapidamente não só sobre a transfiguração do Fishmans em objeto de culto (cujas particularidades incluem também o respeito à memória do criativo e inquieto vocalista Shinji Sato, falecido em 1999) , mas também sobre o hype e o frenesi em torno do disco Diamond Jubilee, de Cindy Lee. O disco duplo, com duas horas de duração, só está disponível inteiramente, sem divisão de faixas, no Youtube e via um link de um site à anos 90 hospedado no geocities. Não está disponível no Spotify, no Bandcamp ou no Deezer, Tidal, Amazon Music, etc.

Diamond Jubilee seria a aparição final de Cindy Lee, persona drag queen de Patrick Flegel, ex-líder da banda canadense Women. Entretanto, Flegel provavelmente não esperava que nesse gesto de desaparecimento, pouco afeito às facilidades de sua época, provocaria uma procissão de novos indies e hipsters extasiados com a hipnagógica mistura de rock dos anos 60, lo-fi oitentista à la Raincoats ou Beat Happening e trilha de filme de terror. Os shows do projeto têm lotado e vídeos das apresentações pipocam no Twitter, no Tik Tok e no Youtube. Peregrinações em shows em casas minúsculas com duas, três sessões. Não demora e Cindy Lee já estára entre os nomes médios dos próximos festivais independentes de Estados Unidos e Europa.

A sonoridade, embora mais barroca e concentrada neste disco, não é muito diferente de What’s Tonight to Eternity?, o disco anterior de Cindy Lee lançado em 2020, que está no Spotify, no Bandcamp e em outros streamings. Entretanto, não oferece os desafios, que combinam com o garimpo de vinis em sebos e lojas antigas ou as aventuras dos hipsters dos anos 2000 na busca por bandas desconhecidas e estranhas de países nórdicos, por exemplo, que a forma de acessar Diamond Jubilee oferece.

Como quase tudo na era da imagem, a capa do disco de 2020 não parece tão misteriosa quanto do disco de 2024, que traz o desenho de uma figura feminina sentada diante do terminal de Alberta, com os grandes depósitos industriais erigidos em branco e amarelo ao fundo. A capa pouco informa do caráter sessentista da sonoridade, do ritmo de sonho, das guitarras penetrando o inconsciente. De outra forma, diz muito do mistério e da novidade que há em não exibir nada de cara, de dar uma face da moeda que não tem corrido como as moedas comuns pelas mãos dos consumidores de música.

Os casos do Fishmans e de Cindy Lee parecem ser um retrato batido às pressas de uma reivindicação de novas formas de consumo que pouco são tributárias ao comodismo. A figura do aficionado em música que busca um som desconhecido, fora das estações de rádios, anti-pop, empedernido em iluminar margens escuras, parece estar retornando (ou ter retornado). Seria o fim ou começo de alguma coisa?

Quem sabe é só a continuação do garimpo interminável.

Deixe um comentário

LEIA TAMBÉM