Foto: Divulgação

Se fosse possível hackear a memória afetiva da população 35+ do Brasil e, a partir das lembranças musicais ali registradas, sintetizar uma playlist com as 50 canções populares mais encravadas no inconsciente coletivo nacional, é bem provável que pelo menos 70% das faixas fossem da dupla Michael Sullivan e Paulo Massadas. Se duvidas, faça o teste e assista Sullivan & Massadas: Retratos e Canções, minissérie documental da Globoplay dirigida pelo jornalista André Barcinski que passa a limpo a trajetória e o legado da dupla. São tantos hits que a partir de certo ponto a diversão passa a ser adivinhar a próxima música que a série vai mostrar e você nem desconfiava que era deles.

E são muitas – de “Me Dê Motivo”, ápice da canção de corno na música brasileira, aos hits infantis de Xuxa e Trem da Alegria, tudo saiu da caneta da dupla, que mantem a amizade mas já não compõe junta desde 1994. Pontuada por um catálogo aparentemente interminável de hits – “Whisky a Go Go”, “Deslizes”, “Um Dia de Domingo”, “Lua de Cristal”, “Talismã”, só pra citar alguns -, a série em 5 episódios desenha um arco clássico de biografias musicais. Do início em bandas de baile, passando pelas primeiras tentativas frustradas de se firmar como artistas solo – Michael Sullivan, nascido Ivanildo de Souza Lima, foi um dos “falsos gringos” que atacaram o pop brasileiro nos anos 70 – até a descoberta da fagulha criativa que iria consolidar a dupla nos anos 80 e impactar a indústria fonográfica brasileira.

A dupla Sullivan e Massadas com o diretor André Barcinski (Divulgação)

O diferencial é ter os próprios Sullivan e Massadas contando e conduzindo a história por meio de depoimentos recentes, com participações valiosas de artistas que ajudaram a dar vida aos sucessos da dupla, como Sandra de Sá, Robertinho de Recife, Fagner, Gal Costa e até Roberto Carlos, em rara entrevista. Nomes mais “novos”, influenciados pela obra dos dois, como Zeca Baleiro, Xande de Pilares, Chico César e a dupla Anavitória, também comparecem com depoimentos e reinterpretações de algumas canções.

Falando um por cima do outro, como só amigos de longa data fazem, Sullivan e Massadas contam causos de bastidores divertidíssimos, como o da vez que Tim Maia ouviu um jingle que a dupla havia escrito para a Rádio Bandeirantes e ligou aos prantos, emocionado e “exigindo” gravar a música… que na voz do Síndico virou o hit “Leva”, com a mesma letra. Ou de como precisaram brigar com a gravadora pra manter o título e o refrão de “Joga Fora no Lixo”, considerado inadequado pra uma canção de amor.

Tim Maia canta “Leva”, o jingle que virou hit, no programa Cassino do Chacrinha.

Mas além das histórias, sobra tempo também pra refletir sobre a tensão entre a noção de bom gosto estabelecida e o sucesso popular e financeiro. São muitas as ocasiões em que a dupla se viu respalda pelo público ao mesmo tempo em que levava porrada da crítica. Cabe a Sérgio Martins, jornalista e atual editor da Billboard Brasil, fazer a mea culpa da categoria ao reconhecer em dado momento que “com a idade” certos entendimentos mudam.

Adição importante ao projeto de mapeamento histórico e crítico do pop dos anos 70 e 80 que vem sendo desenvolvido por Barcinski desde o livro Pavões Misteriosos, Sullivan & Massadas: Retratos e Canções é um janela para outro momento da cultura brasileira que segue influenciando o presente, quase 40 anos depois. Reconhecer e acolher o força que estes dois e tantos outros compositores de apelo popular tinham e ainda têm no imaginário musical brasileiro é uma lição fundamental para a crítica contemporânea, assim como deveria ter sido no passado. Afinal, como diz o ditado velho e repisado, quem não aprende com os próprios erros está condenado a repeti-los. E a nossa crítica musical merece andar pra frente e evoluir um pouquinho, pra variar.

Deixe um comentário

LEIA TAMBÉM