Foto: Divulgação/Micael Hocherman
Enquanto gravava Amazonas, em 1973, o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos punha a par o encanto e a sedução pela obra de Villa Lobos junto à obsessiva digestão da música do guitarrista Jimi Hendrix, como declarou à Folha de São Paulo em entrevista de 2004. Observando o aspecto visual que Heitor Villa-Lobos imprimia em sua música, o percussionista tentou ele mesmo pintar e fotografar paisagens feitas de som. As texturas das linguagens dos dois compositores, afastados no tempo e no espaço, pareciam indicar um método, que seria utilizado por Naná junto ao produtor Fagner e ao arranjador Nelson Ângelo, que geraria ferramentas e instrumentos para capturar, simular e mapear as paisagens sonoras que remontam à floresta e aos rios amazônicos. O disco de Naná é obra seminal do jazz e da música experimental brasileiros, onde a busca por um tom próprio para intervir no cerne da experiência sonora aponta para um caminho que pavimenta a rota que outro jazzista brasileiro tomará cinquenta anos depois. Do fio traçado em 1973, o pianista pernambucano Amaro Freitas acende uma fagulha na ponta que se inscreve ao final daquele disco e inicia seu Y’Y, um disco aquoso e flutuante que traz em si uma renovação da linguagem proposta inicialmente pelo percussionista (que era seu conterrâneo, inclusive).

A relação entre o disco de Naná e o de Amaro se aprofundam e se distanciam conforme o ser criado pelo pianista ganha unhas, dentes, cabelos, garras afiadas e uma barriga que engole a tudo, traga e demove o mundo, como a do mítico monstro “Mapinguari”, que dá nome à faixa de abertura do disco. O mapinguari da mitologia indígena era uma figura que apresentava um corpo metamorfoseado de bicho e gigantesco trans-humano com uma boca estendida ao longo do abdômen, e imitava a voz dos caçadores que andavam pelas matas para confundi-los e cercá-los até que virassem presas. A relação da música de abertura de Y’Y (pronunciado “eey-eh, eey-eh”, que significa ‘água’ na língua dos sateré-mawé) com o ser monstruoso se internaliza na própria capacidade de tragar, confundir e simular a voz de outro destinatário: a voz dos sons da mata, a voz do piano que imita um mapa de rio, a voz da tecla como o bico de um pássaro contra a madeira oca, o som dos pés sobre a folhagem, o som do vazio da mata quando ninguém testemunha os seus ruídos, as manias dos ventos, folhagens e troncos, seus grunhidos e suas linguagens.
Depois da invocação primordial, o disco apresenta um manancial de pianos que perseguem a melodia e se confundem com o som da madeira e da textura do material que o compõe, como em “Uiara (Encantada da Mata)”, em um gesto que lembra o Hermeto Pascoal de Slaves Mass, mas num movimento em que Amaro Freitas parece lançar-se contra a melodia simples e invoca dentro dela uma nova direção, um desvio de rota e um caminho para a ambiência, o descolamento da linha melódica em direção ao som fugidio da mata e das águas, o som próprio que ele coligiu de sua experiência na Amazônia.
Em “Viva Naná”, a invocação dos apitos lembra a sonoridade do já citado Amazonas, do percussionista pernambucano, abrindo o caminho para o espelhamento das paisagens sonoras que aqui serão conduzidas por Freitas junto aos arranjadores Laérico Costa e Vinicius Aquino. Na apoteótica “Dança dos Martelos”, o piano vira tamborim, tambor e bomba: aqui o instrumento é levado aos próprios limites, enquanto elemento dissonante e enquanto criador de tensões e conflitos que vão se desenrolando ao longo da faixa, se estendendo e desenvolvendo ao longo dos nortes que vão se inscrevendo no seu horizonte: soa mais hermético por vezes, em outras é conduzido ao solo de harmonia mais objetiva. A paisagem sonora se transforma, então, numa pintura intrincada e de formas pouco genéricas.
Contando ainda com participação de novos nomes imponentes e importantes do jazz mundial, que a seu modo também entortam e subvertem padrões do gênero, como a harpista Brandee Younger, que faz um dueto com Amaro em “Gloriosa”, o guitarrista americano Jeff Parker, guitarrista do Tortoise, em “Mar de Cirandeiras”, e o flautista inglês Shabaka Hutchings, além do baterista Hamid Drake e o baixista Aniel Someillan, em Y’Y os convidados põem em cena suas características, mas avançam como parte da flora sonora que o pianista pernambucano cultiva de forma unívoca ao longo do lançamento. Em nenhum momento se perde a unidade.
Mesmo na enérgica “Encantados”, faixa de encerramento que soa diversa em relação ao tom geral do disco, há uma invocação da natureza e da ancestralidade de Amaro Freitas que dão ao todo o teor de som polido para conversar em voz única com a floresta. O som do piano aqui é como uma pedra que cresce no meio do rio: muda o seu curso, altera a força da corrente, mas se dispõe a ser corroído e atravessado como parte da fluência da correnteza.
Ouça Y’Y de Amaro Freitas no Bandcamp, a seguir. Também disponível em outras plataformas.






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