2023 foi um ano pródigo pra música: cheio de discos importantes para bandas já bem estabelecidas e artistas joiados (alô Yo La Tengo, o sr. Jards Macalé e as não mais-promessas, já consagradas, Ana Frango Elétrico, Ava Rocha e grande elenco), o ano também reservou uma série de estreias ou novas faces de músicos imponentes. Nessa minha lista, com apostas e uma lanterna apontada pra uns nomes escondidos ao longo desses meses, indico uns sons que podem ter passado despercebido ou não ganharam os postos principais nas listas do ano por aí (tirando as poperô e uma não-lançada ainda que promete muito em 2024).
Obs: acabei deixando de fora os brasileiros e brasileiras, mas não deixo de mencionar aqui os belos lançamentos de Luiza Lian, das já citadas Ana Frango Elétrico e Ava Rocha, do FBC, do Polara, do Rodrigo Ogi, o belo EP da Loreta Colucci, a sonzera da IDLIBRA e muito mais que passaria o dia citando.
Desde já ficam os votos de um 2024 tão brabo quanto esse ano para a música mundial.

Kara Jackson – Why Does The Earth Give Us People To Love
Poeta jovem laureada, Kara Jackson estreia na música em grande apoteose com Why Does The Earth Give Us People To Love. Disco confessional e descendente da tradição fundada por Joni Mitchell, a obra é um compêndio também da nova cena americana formada por nomes como NNÄMDI, KAINA e Sen Morimoto, que participam do disco fazendo backing vocals, produzindo ou tocando respectivamente bateria, sintetizadores, guitarra e baixo. O folk de Kara Jackson passeia pela épica, como em “Rat”, e pela ironia, como em “Dickhead Blues”, sem perder certa ternura que circunda cada uma das canções, onde a desesperança parece dar lugar à redescoberta das coisas, à abertura pros elementos cativantes ao redor.

Reverend Kristin Michael Hayter – SAVED!
Abrindo mal do antigo cognome LINGUA IGNOTA, Kristin Michael Hayter meteu um Reverend como prenome e se transformou numa missionária saída diretamente de um filme de terror. Simulando diversos formatos de cânticos católicos e protestantes junto a uma mixagem que imita os ruídos de uma vitrola esquecida num quarto escuro, SAVED! é como se Nick Cave fosse a uma cerimônia da missa negra e voltasse de lá com um punhado de dúvidas sobre céu ou inferno, ou como se Dolly Parton fosse a uma procissão de sexta-feira da Paixão e visse alguma coisa que não devia ser vista. Entre com cuidado, talvez a porta se feche e você não consiga mais sair do universo cristão apocalíptico contido nessa pequena fita.

Boygenius – the record
Projeto paralelo de Julien Baker, Phoebe Bridgers e Lucy Dacus, as Boygenius conseguiram levar multidões pra cantar junto com elas em palcos como o do Coachella e fizeram muitas peripécias ao longo de 2023, com muitos beijos triplos, vídeos cheios de gracinha e muitos discursos anti-proibição do aborto nos Estados Unidos. Para além disso, lançaram o disco que deu verdadeiros choques elétricos de ressurreição no roto e esquecido gênero ALT-COUNTRY, uma das últimas fronteiras possíveis do revival anos 2000. Pra quem curte um Jayhawks, um Drive-By Truckers, uma Gillian Welch nervosa, ouvir uma $20, uma “Not Strong Enough” e uma “Satanist” é como reencontrar velhos amigos que não apareciam há muito tempo nas playlists.

Bruiser and Bicycle – Holy Red Wagon
A cena de Nova York nunca descansa e nunca some, mas cada vez menos apareciam nomes roqueiros ou na esteira do indie rock, ou de um rock esquisito que está fronteiriço ao som de bandas como Animal Collective ou coisas afins. Diante disso, surge um grupo de moleques dispostos e ultra-producentes chamada Bruiser and Bicycle, com Holy Red Wagon, um disco cheio de pérolas como a esquisita “Aerial Shipyards”,” que soa como se os Beach Boys dessem uma latada boa de loló, ou a guitarreira “Lunette Fields Speak”, que é como se os infantes acenassem pro Wavves de King of The Beach e mostrassem um novo caminho.

Genevieve Artadi – Forever Forever
Parceira do jazzista Louis Cole na dupla Knower, Genevieve Artadi se mostra inquieta, swingada e ortodoxa à formação de jazzeira que teve e entrega um disco singular com altos hits potenciais pra ouvir com ouvidos atentos e prontos pra surpresas. Sincronizando o pop com o jazz mais escalafobético, faixas como “Visionary”, “Message to Self” e “Plate” são peças cheias de ginga do universo sincrético da cantora e instrumentista americana.

Cloth – Secret Measure
Cloth é um duo de Glasgow formado pelos gêmeos Rachel Swinton e Paul Swinton. Minimalista mas cercado de preenchimentos, de texturas e pequenos acontecimentos ao longo das canções, esse disco guarda segredos e pequenas joias que vão se revelando ao ouvinte conforme se frequentam cada uma das músicas. A faixa-título, inclusive, é a imagem de como soaria o The XX se fosse formado por fãs de post-rock e shoegaze: o som das guitarras vai se imiscuindo pela voz de Rachel Swinton até se fundir numa egrégora de vozes e riffs dissonantes. Apesar do já citado minimalismo, o uso dos sintetizadores analógicos, de sopros e percussões torna esse disco imbricado de possibilidades, que não cessa de se renovar conforme o tempo passa.
Joanna Newsom – Live at The Belasco (Los Angeles)
(YouTube)
Esse disco não existe. Se trata de uma gravação ao vivo de um show surpresa que a sensacional Joanna Newsom, maior compositora, instrumentista e ser humano viva para este que aqui escreve, fez na abertura de um show do Fleet Foxes. Nesse show estão incluídas cinco músicas novas que estarão no disco da cantora que sairá em 2024, e apesar de ser uma espécie de ensaio aberto, se trata de um dos grandes momentos da música em 2023. Apesar de todos os superlativos nessas linhas, não há superlativos suficientes pra falar desses sons.

Liturgy – 93696
Metttal. Segundo o próprio manifesto da banda, black metal transcendental. O título do disco em si já é uma menção gnóstica: trata-se do número que quantifica o céu, segundo a interpretação da numerologia telêmica desenvolvida pela vocalista e compositora Haela Ravenna Hunt-Hendrix. Entrecortado por riffs mastodônticos e por cânticos que lembram (ou registram, de fato) rezas e conjuras, o disco do Liturgy é também o testemunho de um projeto estético diferente no panorama do metal contemporâneo. Há algo mais escondido nesse céu, ainda mais longe.

Corinne Bailey Rae – Black Rainbows
(Spotify)
Corinne Bailey Rae apresenta seu disco mais extremo: sem medo de trazer à baila o seu lado mais jazzístico, enlarguecendo canções, deixando a livre instrumentação aparecer, tomando caminhos que testam os limites do seu costumeiro R&B. Aqui, a cantora fez seu disco mais conceitual (é baseado numa exposição do artista Theaster Gates sobre a história dos negros dos Estados Unidos), transitando até mesmo por gêneros estranhos à sua carreira, como o garage rock em “Erasure” e a progressiva “Before The Throne Of The Invisible God”, enfeixada num jogo björkiano de camadas de melodias que se estendem por cinco minutos.

Titanic – Vidrio
Mabe Fratti é uma violoncelista guatemalteca radicada no México que anda pelos Estados Unidos fazendo diversos projetos com música eletrônica. Um desses projetos é o Titanic, formado por Fratti e Hector Tosta, ou I. La Católica, que toca guitarra, pianos e sintetizadores no projeto. Absorvendo influências do baroque pop, da música erudita moderna e do ambient, o duo funde construções complexas em elementos quase pop como “Anónima” e “Te Evite”, mas com a exploração de formas da música erudita tocadas sob pedais de distorção, repetições e desestruturações da forma clássica da canção.
BONUS TRACK:

a.s.o – a.s.o.
Preparem-se: além do anunciado mais acima revival do alt-country, vem aí o inevitável revival do TRIPHOP. Essa dupla de jovens, formada por Alia Seror-O’Neill nos vocais e Lewie Day na produção eletrônica, passam um curto circuito no som radiofônico de canções pop, soando como se o Massive Attack entrasse nas pistas de dança do hyperpop. Não é pouca coisa. Fiquem atentos






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