O sinal gritou por atenção em meio ao ruído da caixa de e-mails: “MANEJO FÁLICO – o novo lançamento da mãe que dá medo” . Quem demônios me bota um nome desse na banda e no disco? Essa eu tinha que ouvir, e o clique veio de forma quase inconsciente.
Abrindo a cartinha, descubro que a mãe que dá medo é um duo de Maceió, formado por Gabi Ramos (guitarra) e Victor Mafra (bateria), que experimenta com metal, harsh noise e música eletrônica. Manejo Fálico, que saiu esse ano, é o primeiro álbum de fato da dupla, depois de alguns singles em parceria com Victor Brauer (Lupe de Lupe) e Julia Soares, e do EP Mqdm Álbum Rejeitado que, apesar do desgosto dos próprios autores escancarado no título, segue aí, vivo & disponível pela rede mundial de computadores pra quem tiver coragem.
Manejo Fálico, o disco que eles estão divulgado agora, é difícil de ouvir e mais ainda de explicar. Pra tentar criar uma imagem, seria algo como se Tetsuo The Iron Man reencarnasse num computador Pentium III com a memória lotada de vírus, samples de drum’n’ bass da virada do século, e mp3s de bandas de thrash metal rejeitadas pela redação da Rock Brigade.
A princípio caótico e hermético, é um desses discos que exige um compromisso do ouvinte, um pedido que contém, ao mesmo tempo, uma reverência e uma subversão do formato do álbum tradicional. Reverência porque, afinal, é um disco e merece ser ouvido como tal, isto é, inteiro e não aos pedaços, como quer a economia da atenção na era do streaming; e subversivo porque não tem o menor interesse em formas tradicionais de organização de discos, dispensando conceitos e investindo em colagens, mudanças bruscas de direção e gravações ao vivo lado a lado com registros de estúdio.
Tá com medo? Calma que piora, mas vale a pena a viagem. Confira a seguir o papo com a dupla Gabi e Mafra, que fala sobre a formação da mãe que dá medo, o processo de composição do álbum, e as dores e delícias do corre independente em Maceió.
Revista O Inimigo: Opa, pessoal, beleza? Pra começar o papo, vamos falar um pouco sobre como a banda começou.
Mafra: A banda começou com a amizade minha e da Gabi. Somos amigos há muito tempo, desde o colégio. Lá pra 2018 ou 2019, a gente saía muito junto, quer dizer, saía às vezes, né? Ficava muito em casa também, fumando muitas maconhas e ouvindo rock progressivo até o talo. Daí, quando deu a pandemia, eu fiquei trancado em casa sozinho, minha família ficou em outra cidade. E Gabi passou uns dias lá em casa, já que ela também estava sozinha em casa, praticamente. E daí a gente teve a ideia de começar a fazer música, mas não tinha muita ideia do que fazer. Nosso primeiro ensaio foi no closet da minha avó. Era um closet de 2, 3 metros quadrados, por aí. E a gente tirou um som nesse dia e começou a ter a ideia de ter um projeto de música e fazer muita coisa, inclusive muito ruído. Na mesma época a gente começou a ter muita referência do japanoise. Merzbow, Masonna, Hijōkaidan… E aí em 2020, 2021 a gente lançou o primeiro EP, o Mqdm Álbum Rejeitado. E foi assim, começamos na amizade e somos amigos bem próximos até hoje.
Não imaginei que o ponto de partida teria sido rock progressivo (risos). Como vocês foram disso pra essas influências da japanoise? Como vocês decidiram ou foram se encaminhando pra essa proposta atual?
Mafra: A gente se juntava pra ouvir esses rocks porque era mais um gosto em comum. Mas a nossa ideia sempre foi fazer um som mais experimental, puxar pro lado um pouquinho mais estranho da música. Quando a gente começou, não tinha uma ideia muito estabelecida não. Acho que a gente sempre gostou de passear entre gêneros, mas não se estabelecer fixo em nenhum. Acho que a gente só chegou a fazer isso com o noise porque ele possibilita fazer essa chegada em todos os gêneros sem ser uma discrepância enorme.
Gabi: Foi isso, gostos parecidos e uma vontade de tirar som mesmo. E foi esse o resultado. A gente se chama mais de banda experimental porque não é muito estabelecido qual vai ser o gênero. O próprio álbum passa por várias coisas, mas acho que o noise é central. Não necessariamente um harsh noise, mas tudo que puxa pra algo meio barulhento, essas zuadas.

Vocês já tinham outras bandas antes ou a mãe que dá medo é o primeiro projeto musical de vocês?
Mafra: Eu só toquei em uma banda antes, que era o projeto solo da Sara Pinheiro. Eu era baixista. Toquei com ela e depois a banda virou a Saradas. É uma banda indie rock, a gente tocava as músicas autorais dela. A gente passou um tempo sem tocar porque a Sara teve uns problemas no braço, mas ela já está melhor agora e a gente toca em outro projeto, que leva o meu nome. E tem a Victor e Lésbicas, que sou eu, Sara e Julia Soares. E a gente meio que se mantém no negócio do rock alternativo, mas sem sair muito da linha. Tem umas versões de música, tipo “Hoje Vai Ter Festinha”, tem versão do Mac DeMarco, umas músicas autorais. A gente tá se organizando pra lançar disco daqui a pouco.
Gabi: Eu já tive outros projetos, outras bandas aqui. A que mais tem destaque e tá na ativa até hoje é a Quarto Vazio. É uma coisa mais emo, indie. Também saiu disco esse ano, mas tem outra pegada, bem diferente da mãe que dá medo.
O que normalmente a gente ouve vindo de Maceió, de Alagoas, são coisas um pouco mais “convencionais”, digamos assim. Tipo Necro, Mopho, etc. Existe uma cena experimental hoje aí em Maceió?
Gabi: Não dá pra dizer que tem uma “cena” experimental aqui em Maceió. Tem alguns artistas que fazem sim, uma coisa mais “lado B”. Tem a galera do rock psicodélico, Necro e Mopho, que foram bandas grandes e tal. Isso é bem forte, mas não chega a ser experimental né? É um som mais convencional. Mas pra rolê mesmo, a gente cola com a galera mais próxima, que faz um som mais indie, não necessariamente parecido com a mãe que dá medo. A gente preza por manter rolé e contato com quem tem ideias parecidas com as nossas nesse sentido.
Mafra: É, tem algumas pessoas bem espaçadas assim. Mas em Maceió, eu só conheci um cara que dizia que fazia noisecore. Gabi deve lembrar, mas eu não lembro o nome dele – é “Psico” alguma coisa. Mas de coisa experimental mais puxado pro que a gente faz, eu só cheguei a ver coisas parecidas em São Paulo. Lá tem uma cena de grindcore bem interessante, e com um pessoal jovem. Burrice Precoce, D.S.T. Noise, Malditos Jovens do Reggae. São pessoas que eu vi bastante show, sou amigo próximo, e sou bem inspirado por eles também. Uma rapaziada foda com um som muito bom também, vale a pena dar um saque.

E os lugares pra tocar? Existem espaços em Maceió que comportam uma proposta mais experimental como a de vocês?
Gabi: As casas de show daqui a gente nem fala qual é a proposta da banda antes de conhecer, porque às vezes quando conhecem, aí já não querem mais, sabe? Aí rola da gente mascarar um pouco o que a banda é pra no show mostrar. E aí a casa que lide, se tiver espantando o cliente. Mas sempre dá certo. Assim, já deu alguns probleminhas, mas sempre dá certo.
Mafra: (rindo) Gabi tá certa nesse negócio das casas. Teve uma em específico que era uma casa meio de playboy e teve um evento lá, o Tropical Punk. E nossa, o pessoal foi tão pau no cu com a gente… Na época, a gente tinha um planejamento de todo show quebrar alguma coisa, só pra fazer. E nesse dia, por coincidência, a gente tinha levado uma televisão quebrada, que devia ter umas 35, 40 polegadas. E a gente só jogou no meio da galera – eu dei um chute do palco e o pessoal fez o resto, destruiu. E foi ótimo ver a cara do dono pau no cu nesse momento. Foi uma delícia (risos).
Como foi o processo de gravar o Mqdm Álbum Rejeitado? E por que ele foi rejeitado, afinal?
Gabi: No primeiro álbum a gente pensou: “Bom, vamo fazer uma banda, então tem que lançar alguma coisa, né?”. Então, a gente teve a ideia de fazer esse EPzinho. Foi tudo feito no meu quarto aqui em casa, com uns equipamentos qualquer e uma bateria eletrônica emprestada. A maioria das músicas são feitas de improviso, no primeiro take mesmo e ficou. Em outras, a gente fez uso de colagens. Pegamos vários sons que fizemos no dia e juntamos, montamos uma colagem. Também nessa proposta de ser orgânico e eletrônico, porque a gente sempre quis ser os dois, tá ligado? Aí a gente lançou esse álbum, só que eu não gostei nem um pouco do resultado, tirei várias músicas. Eu ouvia e ficava, “véi, não dá…”. Aí, tirei as músicas e ficaram só algumas ali. E o próprio nome diz, ele é “rejeitado” por nós mesmos. A gente não suporta, não curte – eu, pessoalmente, pelo menos. Mas é isso: saiu, ficou pro mundo, tá lá.
O disco novo, Manejo Fálico, foi gravado em estúdio ou em casa mesmo, como o anterior?
Gabi: As músicas orgânicas, vozes e instrumentos, foram gravadas em estúdio, no home studio da Julia Soares, que masterizou e mixou algumas faixas. A outra parte, mais de beats e eletrônica, foi aqui em casa.
Quando eu fiz o primeiro contato pra entrevista, Mafra comentou que vocês estavam viajando pelo Nordeste. Como está sendo a circulação da banda, pós-lançamento do disco?
Gabi: Tá sendo muito massa. A gente fez uma mini-turnê, fomos pra Salvador, Aracaju e tocamos aqui em Maceió. E em dezembro, vai rolar um show em São Paulo. Mas além desse rolê que a gente tá dando pra divulgar o álbum, na internet mesmo teve recepção legal, chegou em uma galera que a gente não imaginava chegar. E tá tendo uma quantidade de ouvintes legal. É que a gente divulga, mas também não fica falando todo dia sobre isso. A gente fez os clipes, pra ver se chegava mais longe. A Sara Ahab, nossa amiga, que fez. Uma coisa que me surpreendeu nas estatísticas do Spotify é que metade dos ouvintes não é do Brasil. Só que a gente nunca divulgou, nunca entrou em contato… mas pelo jeito, tá caindo em playlists.
A gente toca muito nesse assunto de redes sociais com as bandas que a gente entrevista. Essa necessidade de estar sempre presente, produzindo conteúdo. Qual a importância disso ou o quanto isso é fundamental para banda se manter? No sentido de fazer com que o som chegue a quem quer ouvir, em mídias de divulgação independente, etc. Vocês procuram ter algum tipo de estratégia pra lidar com isso?
Gabi: Pior que é uma parada fundamental pra poder manter a viva pras pessoas. Assim, conseguir contatos, como você falou. Mas é um problema também porque eu, pessoalmente, não curto tanto. Tipo, falar com a câmera, essas coisas. Sempre fui mais reservada nessas coisas de internet. Mas tem que falar, que botar a cara, criar o que quer que seja pra ser visto e ter algum tipo de resposta. Mafra é mais desenrolado, mas sou até eu que gerencio mais essa parte da internet, pra vender merch, conseguir tocar. Por mais que a mãe que dá medo não seja o nosso “trabalho”, a gente não vive da banda, seria impossível (risos). Mas é um sonho, meio inviável, mas a gente continua fazendo pelo rolê de fazer o que a gente tá a fim de criar. Pra mim, sempre foi pelo querer fazer música e não importava quem ia tá ouvindo. Mas aí depois começa a importar pra você conseguir tocar, né? Mas não tem muito planejamento não. Tem lives nossas que a gente colocou, do jeito que saiu, só pra ter alguma coisa online. Planejamento mesmo foi mais agora que o álbum saiu. Tamos muito na fase de fazer show também. É conflitante porque tamos organizando varias paradas por trás e não tem o que lançar na internet, aí fica meio caído… Mas enfim, o público que se formou é muito massa, e tá sempre com a gente. Tipo, agora a gente tocou em Salvador e deu uma galera nova que foi massa também. Isso vai acontecendo mesmo sem planejamento. Só o que a gente parar pra fazer… Aliás, a banda até já teve uma pausa, quando Mafra se mudou e eu fiquei aqui. Ficou parado um tempão, e a gente decidiu ser real, e parou de ficar postando coisa. A gente tenta ser bem real na internet. Não quer criar conteúdo do nada só pra dizer que teve, sabe?
Falando de shows ainda, notei que a última faixa do disco é um registro de uma apresentação ao vivo que, se não me engano, é a mesma que tá no YouTube como ao vivo na Soneca!, né?. Como foi essa apresentação específica? Pelo vídeo, vi que tem trechos que foram criados ali, de improviso. Foi isso?
Gabi: A Soneca! é uma produtora audiovisual feita por Julia Soares, que produziu algumas faixas do nosso álbum, e outro amigo nosso, João Lucas, que cuida da parte do vídeo. Eles convidam artistas e produzem lives customizadas a partir do som do artista. A gente foi convidada pra ser a primeira banda e tudo foi feito meio que no improviso, sim. A gente separou alguns samples e tal, mas não tinha nada pronto. Foi tudo montado ali junto do noise mesmo. A primeira parte do vídeo é a gente apresentando nossas músicas, algumas nem estavam finalizadas . É um registro massa, boa qualidade de gravação e de imagem. Foi um presentão que a gente recebeu. O show da gente é meio que o formato dessa live, a primeira parte com a gente tocando e a segunda parte é mais eletrônica, mais noise.
A inclusão da faixa ao vivo foi um toque interessante pra mim porque o disco não parece um produto ou uma obra fechada, mas sim um registro ou diário do que vocês produziram naquele período. E isso inclui essa apresentação ao vivo em que coisas foram criadas ali no improviso, músicas foram apresentadas em forma diferentes das formas finais, etc. Isso quebra um pouco a estrutura formal do álbum, que é um formato que, eu imagino, não interessa tanto pra vocês.
Gabi: Sim, é mesmo. Essa ideia de fazer um álbum tradicional é uma coisa que a gente nunca nem pensou em fazer. Foi mais assim, vamos juntar tudo que a gente fez e fazer com que seja uma experiência que faça um mínimo de sentido. Mas sem que as músicas estejam conectadas, nem que soem parecidas. Ou da mesma banda, até. Algumas parecem de bandas diferentes ou de pessoas diferentes. Sempre foi a ideia de fazer o que a gente quer mesmo, o que dá vontade. A gente fez um hyperpop no meio da música, e o nosso público é mais roqueiro. Foda-se, véi. Sempre foi mais pra ser uma coisa divertida, entre eu e o Mafra, do que ter essa seriedade, de cobrança do que é ideal. Por mais que exista uma auto-cobrança absurda, mas por outros motivos, não por esse, sabe? Acho que o álbum ficou bem a cara da gente, esse monte de ideias que surgiram e a gente foi até o fim.

O disco tem algumas referências que remetem aos anos 90, da música eletrônica da virada do século, e de sons de notificação de computador. Daí fui olhar a capa de perto e notei esses elementos no projeto gráfico também – referências ao Windows 95, à estética do DOS. Como isso entrou no som de vocês?
Gabi: É, acusam a gente de ser meio nostálgico. Isso é uma coisa que eu nem pensava, nem era consciente. Acho que essas referências todas vem porque eu e Mafra nascemos já depois da virada do milênio. Eu sou de 2001, ele é de 2003. E a gente já cresceu com essas coisas muito fortes, tela de computador na nossa frente desde criança. Acho que isso se torna uma coisa meio engraçada de ficar lembrando, e acaba botando no som. Mas foi uma coisa bem espontânea mesmo. É uma coisa que tá no nosso inconsciente, no nosso imaginário. E acaba ficando nas músicas. A capa foi feita pelo damaged artwork. A gente ficou um tempão tentando fazer uma capa, mas aí a gente encontrou ele. A gente só mandou uns sons e deixou ele bem à vontade pra criar. Ele mandou uma primeira versão bem parecida com a que ficou, mudamos umas coisinhas e foi isso. Fiquei muito feliz com o resultado dessa capa. Todos os sons que têm no álbum dá pra tirar dali. Ficou foda.
Navegando pelo instagram de vocês, descobri o site Desconhecido Juvenal e vi que o Mafra escreve lá também. Querem falar mais do site?
Mafra: O Desconhecido Juvenal é um coletivo que a gente formou esse ano ainda, bem no começo. Acabei entrando porque eu conhecia um dos organizadores, o ilegas, e comecei a escrever lá, fazer entrevistas e tal. A gente foca muito em fazer matérias, artigos sobre as bandas, sobre shows e tem algumas entrevistas. O nosso foco principal é espalhar a cultura underground pro maior número de pessoas possível. A gente tá sempre procurando falar do underground no geral, não só de música, não só de rock. Tem matéria sobre drag queen, sobre grindcore, tem de tudo lá. E a ideia é ser um grande coletivo, espalhar essa cultura underground pra todo mundo, e ser interessante de ler. Ter um toque de ironia… Enfim, nem queria falar, mas é uma ideia meio pós-moderna, até (risos).
*Não se apavore, abrace o noise e ouça mãe que dá medo no YouTube, Bandcamp ou onde quiser.






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