Guilherme Viégas é um músico gaúcho, de Camaquã, com uma visão de dias melhores. Apesar de ter uma pegada melancólica sobre os dias. Mas durante o papo se percebe que ele quer dias melhores e luta por isso.
O trabalho de estreia dele, Mal-Fatti, não é um disco fácil. Requer algumas audições até ele “baixar”. Muitas questões são postas, deixando mais dúvidas que respostas. Batemos um papo com o artista sobre o processo de composição, sua cidade natal e influências.
O Inimigo – Cara, quando você mandou dizendo que era um disco de rock alternativo pensei que era algo mais barulhento. Mas parte dele tem uma pegada mais intimista na sonoridade e nas letras. Como foi construir esse álbum?
Guilherme Viégas – De certa forma fico feliz que não seja possível classificar o álbum de forma redonda sob o gênero “rock alternativo” . Eu mesmo optei por essa classificação mais por consciência dos limites que o rock traz consigo (por ser uma forma que foi importada pra cá e diz pouco a respeito das nossas raízes etc), do que por uma identificação imediata com o gênero. Em muitos momentos, como tu disse, opto por uma estrutura mais “intimista” pra me comunicar e na verdade, se fosse aproximar a obra de algum signo linguístico, diria que o esforço constante foi tentar ser vulnerável. O que talvez não seja um adjetivo muito usual dentro do cânone do rock mas mesmo assim identifico o álbum a partir dessas matrizes porque foi o horizonte que tracei, todas as faixas contém guitarras (mesmo que desfiguradas em alguns momentos) e principalmente no Lado B do álbum, ao meu ver, há certa continuidade com o que foi feito à margem do rock (Kiko Dinucci, Jards Macalé etc); é a matéria prima que eu usei pra me expressar, mesmo que despojado daquele hedonismo niilista que ao meu ver tira do rock qualquer potencial disruptivo que ele pode vir a ter.
E a criação então segue essa linha, são necessidades que se impõe e a vazão pra tudo começa sendo um grito, pouco a pouco vou tentando deixar as coisas mais “civilizadas” e aí tateio as palavras. Nesse primeiro trabalho as letras sempre foram feitas antes das músicas, a ideia era realmente tentar colocar pra fora as merdas que eu tava sentindo e calhou de eu ter instrumentos por perto que me ajudaram com isso. Ao longo do processo eu fui percebendo que o que eu sentia não era restrito a mim e isso foi se incorporando ao próprio conceito do álbum, minha radicalização política tá entranhada nesses sons, então as expressões foram ganhando um sentido de causalidade maior: comecei falando dos meus sentimentos e acabei descobrindo os sentimentos do meu pai, da minha família, da minha cidade etc. Obviamente há um recorte particular nisso tudo mas é interessante perceber como esse processo de amadurecimento político afetou e afeta minha criação.
Como as letras foram feitas antes, eu já tinha uma ideia de como gostaria de enunciar as palavras, então as bases vinham acompanhadas dessa intensidade, uma característica que eu queria desde o início era gravar as tracks “soltas” (sem metrônomo) e fazer isso deu um pouquinho mais de trabalho; eu comecei ele em outubro de 2020 e acabei em agosto de 2023, acabei produzindo e mixando por conta própria porque era a única maneira viável de fazer o projeto rolar e aí trouxe alguns amigos para as composições que necessitavam dessa forma “banda de rock”. As gravações foram divididas entre meu quarto e um estúdio aqui da cidade e pra masterização eu consegui chamar o Martin Scian, que é um nome já consolidado dentro da cena de música independente aqui do Brasil – no geral foi um processo bem solitário, até por conta da pandemia e acho que isso transparece no corpo do álbum.
Você é do interior do RS, uma cidade a pouco mais de 100 km de Porto Alegre, como é a cena (se é que existe) na cidade para música?
A cena musical daqui existe mas ela é voltada pra outras formas de consumo, a cidade se situa entre dois importantes centros urbanos da região sul, Rio Grande/Pelotas e Porto Alegre, então a gente experiencia na dura o fenômeno de ‘fuga dos cérebros’, o pessoal que se forma aqui e tem um pouco mais de condições financeiras tende a sair da cidade e ir estudar ou trabalhar em uma dessas regiões, meus amigos mesmos estão praticamente todos em uma dessas duas cidades, então em vários âmbitos diferentes, não só no artístico, há essa falta de renovação dos espaços, por isso é difícil tentar articular movimentos ou projetos que se sustentem por muito tempo, há um apego às estruturas musicais e discursivas usuais mas talvez isso diga mais sobre a realidade da produção cultural em países sub-desenvolvidos do que esclareça características singulares da cidade. O que vale destacar é um festival chamado Rock e Poesia que rola faz mais de 15 anos e que sempre juntou um público da região que é voltado pra esse tipo de música, por mais que não predomine produções autorais, é incrível ver tanta gente ouvindo rock na capital do arroz parbolizado [risos], a gente tocou lá esse ano e foi uma experiência muito intensa, espero que ele continue a crescer e a incorporar repertórios de músicos locais.
No e-mail você fala em debate político e artístico na cidade, como isso interfere no seu trabalho?
Camaquã atualmente é uma cidade reacionária, por mais que a região tenha tido protagonismo com o primeiro projeto de reforma agrária realizado no Brasil na década de 60, com direito a Leonel Brizola andando por essas bandas, o que a gente vê hoje em dia é praticamente o oposto e nesse sentido podemos estabelecer características que são próprias do município mesmo, mais de 65% dos votos apurados aqui em 2018 foram pro Bolsonaro, número superior à média do estado e completamente desproporcional ao resultado final das eleições. Já em 2022 houve um embate político mais acirrado e foi o momento em que eu participei mais frequentemente da militância, há um grupo de professores que são bem articulados aqui e tá rolando um projeto de cursinho popular chamado Raízes que inaugura um espaço pra troca de ideias mais radicais. Tudo isso chega até a minha arte de maneira direta, algumas músicas do álbum que são claramente posicionadas surgiram como uma forma, também, de ocupar esses espaços, destaco aqui da 7ª à 11ª música. Diante das particularidades musicais que são próprias dessa região, eu tento orientar uma pesquisa pra conseguir incluir cada vez mais elas na minha arte, “Vale do Silêncio” se assenta sob uma base rítmica de milonga e as referências ao ambiente local são frequentes desde o início do álbum, ainda não estou satisfeito com o quanto consigo entender e produzir no sentido de me apropriar dessas formas que atravessam os pampas, certamente são signos que vão estar presentes nos meus próximos trabalhos.
Essa sua produção, você tentou ou tenta enquadrar em alguma lei de incentivo?
Sim, até o final do ano tá pra sair um edital da lei Paulo Gustavo destinado à incentivos culturais aqui do município e pretendo inscrever o projeto de alguma forma.
Quando se pensa em produção do Sul, e passando por influências locais, me vem a cabeça Graforréia Xilarmônica. Mas sinceramente não nos chegam coisas novas da região. De cabeça, me lembro da tradicional e mais barulhenta Ornitorrincos. Vi um doc também, ano passado, o This is Canoas, not POA! que curti. Indica umas bandas ou artistas pra gente ouvir.
E indico sim!! Tem muita coisa boa sendo feita aqui, vale destacar já de início a discografia impecável do Vitor Ramil, que cobre desde regionalismo e tradicionalismo até experimentação e diálogo com a MPB – A obra do Vitor é definitivamente um horizonte pra mim, acho incrível alguém de Pelotas ter feito tanta coisa e de tão boa qualidade como ele. Salvo também os “Troncos Missioneiros” que foi o principal grupo que protegeu a origem do que é hoje a musica tradicionalista gaúcha (vale a pena escutar: Destino Missioneiro – Noel Guarany). Tem também os Engenheiros né que é clássicão do Rock BR e por último e talvez mais importante, Helmo de Freitas – que é daqui de Camaquã e é um compositor bem conhecido pela região, recomendo: Lago Verde Azul dele.
Ouça Mal-Fatti, de Guilherme Víégas, no YouTube:






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